Era um sábado e eu estava na casa do meu então namorado. Tínhamos catorze ou quinze anos. Ele se chamava (quer dizer, se chama, mas o verbo no passado é irresistível, há muito não sei por onde ele anda) Rafael. Naquele sábado, eu não só sabia como o Rafael andava como sabia seu sabor favorito de sorvete, sua última nota na prova de matemática, seu time do coração. Na verdade, do time do coração eu ainda lembro: São Paulo – estávamos em BH, mas é que o Rafael era (é) paulista. De alguma coisa, a gente sempre se lembra.
A gente tinha acabado de almoçar e estava comendo pudim na salinha de TV com dois primos dele. Um dos primos perguntou se o Rafael ainda tinha um videogame antigo – Mega Drive, se não me engano. Ele disse que sim e todos ficaram animados com a ideia de jogar. Ele se levantou pra pegar o videogame e eu, pratinho de pudim na mão, fui com ele.
Então, no corredor, ele deslizou com dificuldade a porta emperrada de um armário que eu nunca havia notado antes. Era um armário de madeira escura, sóbrio como meus sogros e o resto do apartamento. Ficava num lugar de passagem, o corredor que ligava a sala principal aos quartos. Dentro do armário, os objetos, poucos, não dialogavam entre si. Nas prateleiras do meio, miniaturas com ar abandonado e uma ou outra caixa triste. Na prateleira de baixo, junto com alguns fios soltos e peças indefinidas e talvez quebradas, nosso objetivo, o Mega Drive. Ele tirou o videogame e já ia fechar aquela porta-limbo, quando perguntei que coleção de livros era aquela na prateleira de cima. Uma coleção de livros azuis, cada um dos volumes devidamente preso cada num invólucro plástico.
– É a coleção dos pensadores – ele respondeu. – É do meu pai, veio num jornal.
– Mas como? A coleção toda de uma vez?
– Não, não. Um volume por edição. Meu pai foi comprando.
Aquilo me soou bastante inusitado. Era certo que o seu Ronaldo, o pai dele, era praticamente um desconhecido para mim. Havíamos coabitado o mesmo cômodo algumas vezes, mas raramente trocávamos uma frase com mais de cinco palavras. Com certeza, não sabíamos o sorvete preferido um do outro. De mim, ele sabia que eu era a vizinha, talvez o nome do colégio onde eu estudava. Uma única vez, senti algo por ele: raiva. Foi quando eu o ouvi dizer para a esposa, na cozinha, que não o agradava a ideia de ver o filho dele, “tão novo”, sair com “apenas uma menina”. Eu sabia qual era o trabalho dele: revendedor de brinquedos. E não entendia como um senhor que vendia brinquedos podia ser tão carrancudo.
Sempre gostei de observar as pessoas e suas estantes, abandonadas ou não. Me causou estranheza um senhor tão fechado, cuja vida parecia uma sucessão árida do trajeto casa-trabalho-trabalho-casa, ter se dado ao trabalho de comprar vinte – eu contei – jornais que ele – isso eu também sabia sobre ele – não tinha o hábito de ler. Afinal, aquele senhor carrancudo, na minha mente de quinze anos, se limitava a isso: um senhor carrancudo. Que, eu sabia, não havia terminado a escola. Que, eu via, mal falava com a esposa e os dois filhos, que mal falavam com ele. E aquele apartamento sem livros habitado pelo senhor carrancudo não combinava com aquela coleção azul. Tenho pena desses livros asfixiados nesses invólucros plásticos, pensei. Seu Ronaldo não os merece.
– Esse cara aqui é famoso – falei, pegando o volume de Platão, no fundo querendo me exibir para o meu namorado, que não era lá muito estudioso e me achava a pessoa mais inteligente do mundo. – Pergunta para o seu pai se posso pegar emprestado.
Ele foi lá na sala perguntar. Voltou com a resposta sem justificativa, típica do seu pai: não, eu não podia. Devolvi o livro à estante, triunfante no meu fracasso. Eu tinha certeza que aquele senhor carrancudo não me emprestaria o livro. Fomos pegar mais pudim e jogar videogame.
Hoje, tantos anos depois, me peguei folheando os livros da minha própria coleção azul: os vinte volumes dos Pensadores. Não comprei um por um, com devoção, mas ganhei, há alguns anos, a coleção inteira, e li boa parte das páginas. Do meu computador, olho para a minha coleção e me pergunto se o seu Ronaldo já leu alguma coisa da dele ou se aqueles livros asfixiaram até morrer.
No meu entender atual, porém, o senhor carrancudo era alguém que guardava, em uma prateleira empoeirada de um armário pouco usado, um desejo contido. Alguém que saiu de sua rotina para comprar vinte edições de um jornal por causa dos livros os merece, sem dúvida. Alguém que protege carinhosamente em um plástico um futuro com outros prazeres, outras possibilidades. Alguém que, entre cômodos austeros, também esconde brinquedos e pudins. No fim das contas, talvez não fosse por acaso que a coleção estivesse guardada em um lugar de passagem.
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talvez não soubesse de fato, mas seu ronaldo intuía a importância daquela coleção. tanto que a preservava com o plástico.
Sempre foi um desejo classe média ser uma pessoa instruída, culta. Lembro do sucesso desse tipo de coleção. Só que acabava que quase ninguém lia, só colecionava mesmo.