Doze lições de Bebê Rena
Minhas anotações após passar muito nervoso vendo a série da Netflix
Um amigo comentou comigo outro dia que achou surpreendente como consegui assistir à série Bebê Rena aos poucos. Nem acho que foi tão aos poucos assim: um pouco mais de duas semanas para ver os sete episódios, mas enfim, houve espaços entre um episódio e outro, respiros. Não costumo maratonar as séries porque, se faço isso, esqueço tudo logo após o último episódio: fico vidrada, sinto o impacto, mas depois tudo vai embora da minha cabeça e é como se eu nunca tivesse assistido àquilo. Consigo absorver e aproveitar mais e elaborar melhor se assisto mais devagar. Porém, no caso de Bebê Rena, não foi só para elaborar melhor que assisti aos poucos: foi para não sofrer mais do que eu já estava sofrendo. Sinceramente, vocês que viram todos os episódios de uma vez: como vocês conseguiram dormir à noite?
A série é impactante demais, uma história real muito bem contada que nos tira o fôlego com os turning points todos, com as atuações sensacionais, os diálogos envolventes e, claro, com a personalidade bold de Martha e com a queda livre de Donny por um sombrio túnel psicológico. Ele se deixa levar com tal passividade por situações de muito sofrimento que sentimos tudo ao mesmo tempo: raiva dele, compaixão, raiva de Martha, compaixão, indignação, vontade de saber como acaba, vontade de entender por que, afinal, ele foi tão longe em suas sombras.
Também acho que muitos de nós se identificaram: como Donny, só que em menor grau (espero), quase todos nós já passamos por situações em que, mesmo sendo adultos, éramos os mais vulneráveis da história. E todos tivemos, ao longo da vida, nossas dificuldades para escapar de catástrofes anunciadas e de pessoas que definitivamente não queriam o nosso bem, bem como dificuldades para nos desengajar de comportamentos que nos fazem mal.
Organizei os pensamentos que tive ao longo da série nas doze lições seguintes. São uma espécie de manual de auto-ajuda mesmo, porque tudo o que eu queria na série era que o Donny se auto ajudasse. Ao mesmo tempo, fiquei grata à série porque ela me deu vários lembretes sobre como agir e não agir para se proteger de dinâmicas tóxicas. Como muita gente, já aconteceu de eu ficar com alguém que não era legal comigo e mesmo assim permanecer ali. E, como o Donny frisa de diferentes jeitos em alguns momentos, a culpa não é da vítima, mas de alguma forma ele contribuiu para que as situações de sofrimento nas mãos de Martha e do vampirão fossem ganhando proporções cada vez maiores.
Ah: vou adorar saber que pensamentos foram despertados em vocês vendo a série, me contem nos comentários!
* Todos nós temos nossos demônios internos, nossos buracos e nossas fragilidades, embora nem todos nós sejamos tragados por esse “lado B” até que ele sugue praticamente por completo nossa autonomia de ser e agir. É muito mais fácil ter autocontrole no início de uma situação problemática do que quando ela já se complicou muito, e nesse início o que me parece fazer muita diferença é ser mais pragmático: não se enganar, admitir para si mesmo que está dando ruim e decidir não engajar com a pessoa ou situação. Se nesse início já está difícil escapar, já procurar ajuda se necessário, em vez de decidir brincar com fogo.
* Observe quando interagir com alguém faz com que você se sinta confuso mentalmente, ou quando você simplesmente fica sentindo um mal-estar vago após interagir com a pessoa, principalmente se, ao mesmo tempo, você fica impulsionado a aceitar quando essa pessoa te procura. Um forte sinal de que você está começando a ser controlado mentalmente.
* Entender os mecanismos psicológicos por trás de um comportamento que tem nos feito mal não basta para interrompermos esse comportamento. Teri e o próprio Donny explicam de jeitos que fazem muito sentido as razões de ele se engajar em comportamentos autodestrutivos, mas ele continua engajando em tais comportamentos. Isso me faz pensar em como todos nós temos nossas fraquezas e limitações, e quando nosso eu mais enfraquecido comanda nossas ações é útil procurar ajuda, boa ajuda.
* Quando se é controlado mentalmente, a nossa vitalidade se esvai. É melhor reconhecer isso em vez de se engajar em labirintos racionais ou mentir para si mesmo. Uma boa pergunta para se fazer: eu me sinto mais livre ou menos livre desde que comecei a me relacionar com essa pessoa? Não procure justificar: observe como se sente. Geralmente até o nosso semblante vai refletindo a perda de energia quando alguma dinâmica relacional faz com que nos sintamos menos autônomos, menos no controle de nossa vida.
* Não é porque eu tenho empatia que vou aceitar ser desrespeitada(o). Nós que conservamos nossa sensibilidade mesmo em tempos tão dessensibilizantes podemos ser tocados pela história de alguém que passou por traumas e ficar com vontade de abraçar a pessoa, como acontece tantas vezes com Donny em relação a Martha – lembram de quando ele morre de dó no último episódio quando ouve um áudio em que ela fala que teve uma infância muito difícil? Na verdade, acho que todo mundo tem suas razões para ser do jeito que é e fazer o que faz, e por isso eu seria uma péssima juíza. Até um psicopata – afinal, ele não tem culpa por ter uma pré-disposição genética que possibilitou sua psicopatia, certo? E mesmo com motivos genéticos à parte, todo mundo tem seus desencaixes em relação ao mundo, e se a dor de uma pessoa ferida tomou rumos terríveis, coitada, né? Mas espere um pouco. Eu também tenho os meus motivos para me afastar de dinâmicas e pessoas que me colocam em risco mental e/ou físico. Geralmente eu desejo o melhor para os outros, mas, se o contato me faz mal, faço isso à distância.
* Não é todo mundo que lida bem com muito tempo livre. Lembrei disso quando via Donny aproveitando o tempo livre para fazer mais coisas improdutivas que o prejudicavam mentalmente. Por favor, não estou fazendo um elogio à vida super ocupada. Mas já reparei que há pessoas que se afundam mais facilmente se não têm uma rotina mais organizada e previsível, com vários afazeres, e se trabalham em casa ou num ambiente muito solitário. Donny trabalhava num bar agitado, mas os colegas eram péssimos, as interações distantes ou com baixa qualidade, e ele estava quase sempre isolado.
* Cuidado com a tentação de querer “consertar” as pessoas, resolver questões delas anteriores a você e que te fazem se sentir mal. (Teri, eu não queria que você tivesse sofrido tanto antes de partir para outra).
* Cuidado com a obsessão de tentar compreender as motivações das pessoas, ainda mais de pessoas muito fora da curva (perversas, manipuladoras, antissociais podem ser fascinantes justamente por serem fora da curva. Elas chocam pela novidade, pela suposta coragem e pela imprevisibilidade). Você tem mais o que fazer da vida. Se você quiser muito fazer isso, pode se dar um limite de tempo que perceba que não te faz mal. Exemplo: vou pensar/pesquisar sobre isso por 20 minutos e em seguida fazer a coisa tal que eu quero ou preciso fazer. A falta de autocontrole pode ter raízes profundas, mas isso não significa que seja inútil tentar medidas práticas para aumentar o autocontrole em vez de se deixar levar completamente por alguém ou alguma situação que você percebe que está te fazendo mal.
* Ainda sobre a obsessão de tentar compreender as pessoas: aceite, por mais doloroso que seja, que pessoas manipuladoras (por maldade ou não, conscientemente ou não, tanto faz), cometem gaslight e que isso pode te fazer muito mal. Não adianta se perguntar por que elas fazem isso ou ficar se questionando como elas podem ser capazes de fazer isso. Em determinado momento, Martha começou a acusar Donny de coisas que ela fazia ou era (“Você está atrás de mim!”, “Você tem um problema psiquiátrico!”, “Você inferniza a minha vida!”) e isso foi deixando Donny cada vez mais confuso, mais atolado.
* Ficar obcecado por entender as razões do agressor não te ajuda, ler sobre perfis comuns de vítimas e entender que botões seus foram apertados e o prenderam ou vem prendendo em determinada dinâmica nociva talvez ajude. Não é para se criticar, é para se fortalecer. Porque você não tem controle sobre o pensamento ou as razões do agressor; em compensação, você pode decidir entender melhor as próprias limitações e motivações para aprender com o sofrimento e agir diferente da próxima vez que um agressor tentar entrar na sua vida.
*Nossa força interior continua conosco sempre, mas às vezes acessá-la pode ser difícil – dependendo da nossa história de vida, da nossa fase atual, de maus encontros que acendem nosso pior lado, de desejos socialmente estimulados que vão saindo do controle, como ambição pelo sucesso. Quando estou me sentindo enfraquecida, distanciando-me de minha força de dentro, duas atitudes costumam ser úteis para ir aos poucos me fortificando, mas elas em si exigem um pouco de força e nem sempre são possíveis – mas vale tentar, porque se forem possíveis, vão ajudar muito. Uma é mover a minha atenção para comportamentos que me fazem me sentir um pouco mais leve (contente é meio difícil em períodos mais enfraquecidos, mas depois a alegria vem). Eu quis muito dar esse conselho simples para o Donny quando ele começou a ficar obcecado por ouvir todos os áudios enviados por Martha e pendurar todos aqueles post-its: tentar se engajar em uma coisa que não envolvesse Martha. A outra atitude que me ajuda: não engajar em pensamentos de ruminação e obsessão. Esses pensamentos podem aparecer sem a nossa vontade, eu sei, mas temos algum controle sobre alimentá-los ou decidir que são improdutivos/nocivos e ir fazer outra coisa.
* A fama, ou o que tanto você deseja, por mais agradável que possa ser, não resolve a vida. No último episódio, Donny ficou bem-sucedido na carreira e, no entanto, continuou apegado a Martha e ao vampirão. Nenhum desejo realizado tampa totalmente nossos buracos: não adianta dinheiro, fama, beleza, nada disso, algum desamparo, alguma angústia e algum desencaixe experimentaremos até o fim. Ser sugado por esse desamparo, esse desencaixe, essa angústia é outra coisa, e todos os dias precisamos nos cuidar interna e externamente para que isso não aconteça. Da maneira mais amorosa e criativa possível.
O meu jeito envolve estar sempre em contato com a arte e o conhecimento, cultivar bons vínculos, aprender coisas novas, descansar, me cansar, cuidar da cabeça e do corpo. E escrever, claro.
Gente, eu sou muito de maratonar séries e livros e esquecer o que rolou ali depois de um pequeníssimo tempo. Vou pegar seu método emprestado!
Também apreciei essa série aos poucos, não tenho paciência para maratonar nada, meu cérebro satura do mesmo conteúdo depois de algum tempo. Mas a série é maravilhosamente angustiante e precisa pensar sobre ela e falar dela após assisti-la. É muito importante que possamos fazer essas auto-avaliações sobre nossos limites e relações. Eu, após anos de terapia, consigo criar esses limites, o que era muito difícil antes. Saber dizer 'não' e se afastar de relações que nos fazem mal é libertador.