Revolução digital: como administrar
Decidir o que consumir numa padaria era tão mais simples
Às vezes, depois de mais um dia vivendo no mundo pós revolução digital, respirando mais uma vez o ar pesado do antropoceno e lidando com minhas angústias emolduradas pelo capitalismo financeiro, eu penso: tudo isso precisava ser mesmo na minha vez de viver? Ok, agora que já estou encarnada procuro fazer o meu melhor; como escreveu Clarice, o terrível dever é ir até o fim. Mas tem dia que, olha…
Eu me lembro de quando eu era criança e ia com a minha mãe numa padaria mais distante do que a nossa de costume. Era uma padaria dessas caprichadas, com cheirosas fornadas de pães franceses perfeitamente crocantes por fora e macios por dentro, e eles tinham tantos outros pães de vários tipos e formatos, e salgadinhos de todo tipo com a massa perfeita e o recheio bem temperado. Eram tortas e mais tortas de tudo quanto era sabor, docinhos cremosos, e aqueles bolos transbordantes de cobertura, sempre tinha um novo sabor de bolo. Perto do caixa ainda havia mil chocolatinhos e biscoitinhos caseiros e balas. Minha mãe me deixava escolher duas coisas e eu escolhia sofrendo, me consolando com um cronograma mental: da próxima vez levo o bolo de brigadeiro branco com morango, da outra vez provo aquela trufa.
Eu me sentia perdida entre tantas opções, mas, vendo em retrospecto, o que me consolava não era só meu cronograma mental – o que me consolava de verdade era que eu sabia que tanto a padaria como o meu estômago eram finitos. A padaria era finita: na verdade a padaria nem era tão grande assim, e não era todo e qualquer item que me apetecia – de qualquer modo, a cada visita, eram dois itens a menos da minha lista de delícias a serem experimentadas. O meu estômago era finito: mesmo que a minha vontade fosse comer tudo naquele instante, eu sabia que isso não era possível, que eu precisava ir aos poucos. O dinheiro da minha mãe era limitado, a permissão que ela me concedia era limitada: duas coisas. A finitude impedia que eu me sentisse sobrecarregada. Toda vez que eu entrava naquela padaria, eu queria tudo, provar tudo, mas ao mesmo tempo eu sabia que eu não podia levar tudo nem comer tudo.
Eu queria que lidássemos assim com a internet, com a informação, as redes sociais, o tempo. Eu queria poder enxergar as paredes em torno do tempo, eu queria ver quinze notícias por dia enfileiradas na minha frente, ocupando toda a sala. Depois eu teria que juntar as notícias, dobrá-las, guardá-las dentro do armário, e só de pensar isso eu já desistiria de ler mais notícias.
A gente se esquece (eu me esqueço) de que não se pode levar tudo que está disponível, não se pode comer tudo. O fato de não haver uma limitação espacial nos engana. O nosso tempo é finito, sabemos, mas é fácil fingir que não sabemos, ou esquecer que sabemos.
“Os acervos das bibliotecas virtuais se tornaram infinitos”, escreve Olga Tokarczuk no livro Escrever é muito perigoso. “Diante da tela do computador, fica-se até com a impressão de estar movendo-se por um tesouro descoberto que já não pode ser apreendido – nem os autores, nem os títulos, nem as palavras-chave. A consciência de que agora mesmo, enquanto escrevo estas palavras, são produzidas centenas ou milhares de artigos, poemas, romances, ensaios, reportagens e outros textos causa perplexidade. A infinitude se reproduz por si mesma, prolifera, enquanto utilizamos os frágeis mecanismos das ferramentas de busca para sentir que ainda exercemos algum controle sobre ela”.
Lembrei de uma conversa em que alguém me perguntou se eu gostaria de viver para sempre e eu respondi que não, que não gosto da morte mas me organizo em torno da finitude: a ideia de a minha vida ser um rolo infinito me dá uma aflição enorme, para sempre a interrogação de por que vim e se tem alguma coisa depois, jamais alguma resposta ou o nada, jamais o encerramento desta experiência. Não. Quero a finitude. Não sei lidar com o que não termina, o que não termina tem algo de não humano, eu não consigo alcançar, compreender. Me exaure.
Dados infinitos da internet. Abas, caracteres, imagens, avatares, um link que leva a outro link que leva a outro link. A aflitiva viagem de um carro que não chega nunca, um livro que você vai lendo mas novas páginas vão sendo acrescentada, e mais páginas, e mais páginas.
Conheci o meu marido por um aplicativo de encontros chamado Kick-off. O aplicativo impunha um limite: podia-se dar like em no máximo 5 pessoas por dia. Eu não gostava desse limite. O aplicativo não existe mais.
Não é raro agirmos como se pudéssemos tudo: afinal, as notícias não acabam, os comentários não acabam, o conteúdo se renova a cada instante, e nosso estômago mental com certeza existe, mas, pelo menos em mim, ele nem sempre dá sinais tão perceptíveis de saciedade como meu estômago físico.
Sei que tem gente que se sente saciada e mesmo assim continua comendo até passar mal, mas para mim isso é raro: parte do meu prazer de comer está justamente em não comer nem de mais nem de menos, e sou boa para perceber quando estou satisfeita. Claro que dou uma colherada ou como um pedacinho a mais só de gula, mas geralmente não passa disso, uma colherada ou um pedacinho a mais. Se tem alguma coisa bem gostosa aqui em casa, me lembro de que posso comer na refeição seguinte. Sem estresse.
Não gosto de passar fome por muito tempo. Mas alguma fome, gosto muito de sentir. Adoro. Por algum tempo, antes de se tornar uma maldição, a fome é uma bênção. Ela abençoa a comida mais sem graça. A fome não acende só a mesa, ela me acende toda. Sem fome, mesmo a melhor comida perde algo de essencial. Eu constantemente repleta perco algo de essencial. Não sentir fome é de uma tristeza, é de uma falta de saúde.
Você assistiu à série Bebê Rena? Fiquei muito aflita com o cara percebendo que certas situações faziam mal a ele e mesmo assim continuando lá. Mas na internet não é raro que eu dê uma de Bebê Rena: não quero ler mais comentários, mas continuo lendo mais um pouquinho, já me informei e as notícias agora estão me fazendo mal, mas continuo lendo mais um pouquinho, já vi que essa discussão nos comentários está tomada por pessoas (e robôs) mal intencionadas e falando bobagens ou promovendo ataques, mas continuo lendo mais um pouquinho, ficando um pouco mais perplexa do que eu já estou, perdendo mais um pouco de disposição, deixando minha manhã um pouco mais desvitalizada. E esse pouco de vitalidade que vai embora faz falta, a vitalidade não anda sobrando, tem dia que está só a sobra no tacho.
Tem dia em que o tempo vai passando e continuo na padaria, o dinheiro acabou e continuo na padaria, já provei um pouco de tudo e continuo na padaria, não cabe mais nada no meu estômago e continuo na padaria, tenho saudade de casa e continuo na padaria, preciso voltar para casa e continuo na padaria.
O pior talvez seja quando eu saio da padaria e no entanto continuo na padaria.
Se continuar ou sentir que está ainda na padaria, melhor então se alimentar de sonhos.
a infinitude da padaria virtual exige de nós ainda mais disciplina do que a da padaria física.