Tenho uma amiga que se mudou para São Paulo na mesma época que eu, há duas décadas. Diferentemente de mim, porém, ela acabou voltando para a sua cidade natal há uns três anos. Eu me lembro bem da pergunta que ela me fez, apreensiva, quando resolveu, por força das circunstâncias, encerrar o contrato de aluguel e fazer as malas para a mesma cidade onde cresceu, mais que isso: para o mesmo bairro onde os pais moravam e onde ela havia morado durante a maior parte da vida: “Vou conseguir ser eu mesma em Curitiba?”. Imediatamente, entendi o que ela quis dizer. Acho que todos nós, imigrantes ou não, entendemos.
Longe da cidade onde crescemos, nós nos distanciamos das nossas origens não apenas geograficamente, mas internamente. Parece que fica mais fácil experimentar novos padrões de comportamento, abandonar nossas idiossincrasias mais engessadas, nossos jeitos repetidos de ver o mundo. Não importa onde more, o viajante também vivencia isso por alguns dias, semanas – quanto mais longe e menos familiar for o destino, melhor. Viajar, pelo menos para aqueles com mais sede de ser, pode ir muito além de fazer turismo: é uma chance para refrescar nosso olhar, para sacudir nossa interioridade.
Mudar-se de cidade, viajar para longe: tudo isso é, no fundo, sair da casa dos pais. Descascar-se das características que se tornaram nossas não porque as consideramos as melhores, mas porque estamos habituados. Estar a sós com as próprias regras.
Lembro de uma passagem do livro “A elegância do ouriço”, de Muriel Barbery: “E eu? Será que meu destino já se vê na minha testa? (…) Mas e se, no universo, existir a possibilidade de nos tornarmos o que ainda não somos… será que saberei agarrá-la e fazer de minha vida um jardim distinto do de meus pais?”
Sair da casa dos pais é fundar, dentro de nós mesmos, nosso próprio país. Pensando bem, acho que muitos conseguem fazer isso sem mudar de cidade. Talvez outros, ainda que mudem para longe, não consigam.
De qualquer forma, esse nosso novo país não é uma terra onde ninguém entra. Quando a minha família de origem passa alguns dias aqui em casa, eu me vejo, de novo, ressurgir uma parte de mim há muito esquecida. São detalhes, talvez ninguém perceba além de mim mesma – são apenas traços meus que, independentemente de serem bons ou ruins, andavam adormecidos. Falo de algumas reações automáticas, alguns medos que eu há muito não sentia. Alguns jeitos de sentir alegria também. Algumas simplicidades. Volta o contato próximo com os meus, volta parte de minhas origens. Meu sotaque mineiro, então, esse volta rápido como um bronzeado nas férias.
Alguns mais, outros menos, todos nós mudamos ao longo da nossa história pessoal. Mas talvez nossas versões antigas nunca sejam sepultadas: elas apenas dormem um sono profundo e despertam a cada objeto de infância encontrado e cheirado, a cada vez que voltamos à nossa escola para votar , a cada visita sem pressa no quarto onde passamos tanto tempo durante a nossa adolescência.
Fico pensando em como seria mudar de país.
Fico pensando em como seria morar a vida toda no mesmo endereço.
Sair da casa dos meus pais foi como cortar um cordão umbilical imaginário. Não foi exatamente fácil pra mim, pra eles sei que também não, mas foi intensamente libertador. Ter o meu espaço e a minha privacidade e individualidade (finalmente) respeitados é o maior presente da vida adulta que eu poderia me dar, até porque, antes eu não pagava aluguel, mas pagava com a alma kkkkkk
é curiosa essa sensação de não pertencer mais a um lugar do qual sempre fizemos parte. depois que saí da casa dos meus pais, parece que ela já não é mais minha, mesmo eu tendo morado lá por quinze anos.