Os bloqueios se enquadram em diferentes categorias. Esse pensamento me ocorreu quando eu presenciava a décima vez que minha filha foi bloqueada por uma amiguinha após uma partida online mais fervorosa. Não se deixe enganar, meu docinho de coco vive tomando a iniciativa de bloquear as amigas também. No começo eu me preocupei, a intolerância a falta de diálogo a falta de traquejo com quem pensa diferente com quem discorda etc, mas logo percebi que os bloqueios naquele universo estavam vindo da mera cabeça quente: a pessoa A diz umas verdades sem filtro e sem paciência, a pessoa B fica muito brava com a pessoa A, a pessoa A fica muito brava com a pessoa B e pronto, rola o bloqueio. É o equivalente ao desligar na cara de antigamente. Uma reação passional sem maiores consequências, uma agitação novelesca na inércia, uma rebeldia bem-vinda no mundo dos bem comportados, um ato quase poético. O primeiro a tomar um banho e comer alguma coisa toma a providência de desbloquear, o outro faz o mesmo e não se fala mais nisso, ou se fala bem brevemente, e a vida é assim mesmo.
Considero bem mais problemático quando o bloqueio vem acompanhado da prática conhecida como ghosting. É assim: a pessoa A decide que a pessoa B não é legal na vida dela - A está machucada com B, achou que B não agiu legal em determinada situação, ou concluiu que B é uma pessoa tóxica e que aquela relação não é saudável... E aí A, em vez de conversar com B, puff, decide apagar B da vida dela. Não houve discussão, não houve segunda chance, não houve diálogo. Numa tarde qualquer, o tóxico B descobre o bloqueio quando está à paisana e manda um meme para A, pede um contato, ou só pergunta como A está, A que anda sumida... Mas não tem mais A, tem só aquele vulto sem vida acinzentado do Whats. B vai atrás dos amigos em comum e ninguém sabe o que aconteceu, alguém fala que vai conversar com A, outro lembra B que A é escorpião com capricórnio... B se revolta, pensa mil coisas, fica tentando adivinhar o que pode ter rolado... E fica na dúvida: dá um jeito de falar com A, nem que seja pegando o celular de um amigo em comum, ou manda A às favas, afinal, agora é B que está machucado com A, A não agiu legal nessa situação, A é que é uma pessoa tóxica e aquela relação é que não é saudável para B. E aí, B deve ir atrás de A e tentar conversar? Vencerá o amor de B por A ou o ranço recém-adquirido por A e pelas relações humanas na contemporaneidade?
O bloqueio mais merecido é quando C ataca D (vamos variar as letras do alfabeto). Seja pelo Whats, seja pelo Insta, pelo Facebook etc, C ofendeu D, acusou, xingou, ameaçou, inventou fake new ("Você, D, sempre foi G!"). D, que medita e faz acupuntura, ainda avisa: desse jeito, C, vou te bloquear! C continua, D bloqueia e vai cuidar da vida.
Pensando aqui. O que pode consolar B, no caso do ghosting, é que A provavelmente agiu assim por ter muita dificuldade para ser assertiva: A aguentou mil coisas, não conseguiu falar não, fez concessões que não queria fazer (B é meio lerdo/autocentrado e não percebeu nada disso) e, um dia, A chegou à gota d'água com B e agora é tarde demais, os dedos de A ao tocar a tela já estão dominados pelo ressentimento. Pode valer a pena ir atrás de A, pode não valer a pena, quem sou eu para decidir por você, meu caro B? Mas, se você é a pessoa A, darei um conselho não solicitado, sim: em vez de bloquear B, dê uma distanciada, fale menos com B. E, quando falar, coloque-se quando não gostar de alguma coisa. Treine falar não. E B acabará convidado a ter mais noção. Coragem, A! Se você aprender a se colocar, a relação com B vai virar uma daquelas relações à moda antiga, sabe, em que um cresce com o outro, se modifica por meio do convívio e das diferenças se transforma etc.
Se você costuma bloquear por conta de cabeça quente... Ah, não tenho nenhum conselho não solicitado para te dar. Gosto dos poetas! Se te bloqueiam por cabeça quente... Aproveite a emoção para experimentar essa chacoalhada no espírito, ouça uma música agitada e... abra mão de todos os planos de vingança e abra espaço no seu coraçãozinho assim que a fotinha do esquentadinho reaparecer no seu Whats. O hábito de atacar outras pessoas, ofender, ameaçar, perseguir, não se segurar não ter freio ser dominado pela raiva etc, isso aí exige contenção externa (limite) e um trabalho interno profundo (para haver mudança). Esse trabalho interno só é possível se a pessoa quiser, como sempre.
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P.S.: este texto foi mais um repeteco (não lembro onde eu o publiquei pela primeira vez) em função do recesso que tirei no final de ano (pois é, eu sei que já estamos no dia 10). Domingo agora tem texto inédito exclusivo para os assinantes pagos sobre A equação do amor, um livro bem legal sobre relacionamentos que li agora nas férias, se você ainda não tem o plano pago cola aí que vai poder ler este de domingo agora e todos os já publicados. E na próxima quarta tem texto inédito aqui para todes es assinantes! Beijos, amo vocês, e feliz 2024 para todo mundo!
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eu ainda fico perdido nessas "regras" dos novos tempos. rs
"Uma reação passional sem maiores consequências, uma agitação novelesca na inércia, uma rebeldia bem-vinda no mundo dos bem comportados, um ato quase poético." hahaha bom demais!