Em dezembro começa minha última oficina de escrita do ano, o Ressoa. Por uma semana, envio uma prática de escrita diária aos participantes, que me devolvem o exercício feito. Então eu devolvo os textos de cada participante com meus comentários. Ou seja, é como se por uma semana eu fosse a editora dos participantes. Sempre digo a eles: o autor é a última pessoa a bater o martelo. Respire fundo, ouça meus comentários, pense se concorda com minhas sugestões, releia o seu texto, faça a alteração sugerida, veja se ficou melhor ou se você prefere voltar para o jeito que estava antes. Porque, embora eu tenha algo a acrescentar, o texto é seu, não meu. Eu diria que meu maior objetivo durante essa oficina é ajudar os participantes a ganharem mais consciência do que estão escrevendo, dos efeitos obtidos com as escolhas que eles fazem ao escrever: escolhas de adjetivos, de narrador, de tom, de tamanho de frase, de ritmo, da ordem nos acontecimentos da trama e por aí vai.
90% dos meus comentários são acatados, 10% são jogados fora. Acho um ótimo resultado. Como editora dos participantes, é claro que preciso ter o que acrescentar ao texto deles, senão não teria porque eu dar essa oficina. Porém, escrita criativa está longe de ser uma ciência exata, e às vezes entra em cena não uma questão de técnica, mas de gosto pessoal, estilo, preferência. Exemplo besta: o autor repete a palavra "doce" duas vezes no mesmo parágrafo, o revisor (geralmente é o revisor) vai lá e substitui o segundo "doce" por “guloseima”, o autor pega de volta a palavra "doce": "guloseima" soa artificial para os ouvidos dele, ele quer mesmo repetir a palavra "doce". Essa recusa é muito legal, essa recusa entra nos 10%, e entra no pacote do ganhar consciência do próprio texto.
(Caso rápido que está no livro Paulo Leminski - O bandido que sabia latim: “Leminski mostrou um poema de sua lavra para o mestre Houaiss, que, na condição de filólogo obediente às normas gramaticais, resolveu implicar com as contrações “pra” e “pro” que apareciam no texto. Leminski explicou que a liberdade de poder escrever à maneira que se fala era a alma da sua poesia. A discussão se prolongou noite adentro e só terminou quando Leminski, decidido, anunciou: ‘Pois bem, professor Houaiss, eu vou retirá-las agora em consideração ao senhor, mas, quando chegar em casa, eu as coloco novamente’”.
O tanto que o autor deve mexer ou não no seu texto a partir do olhar do editor, dos leitores críticos e dos leitores é assunto sem fim, e enquanto escrevo isto me vêm exemplos e mais exemplos do que vários autores já disseram sobre essa questão, mas sigamos no que pretendo trazer pra este texto aqui, que tem mais a ver com a nossa vida de todo dia.
Existe, portanto, o gesto de recusa sábia, aquela recusa que vem de certo egoísmo sadio ou discernimento essencial, mas também existe a recusa besta, a recusa por orgulho bobo.
Nas minhas oficinas, e acho que nas oficinas de escrita de modo geral, acho que isso não acontece, porque os participantes estão muito abertos a ouvir e a repensar o próprio texto – eles estão ali, afinal de contas, para aprender. A não ser que seja um curso ministrado por um daqueles professores que acham que escrever bem é escrever do jeito deles, quer dizer: se é um professor que escreve ou gosta de textos com períodos curtos, ele vai encurtar as frases dos alunos; se é um professor que só se interessa e dá valor a determinado tema, ele vai direcionar os textos para esse universo etc. Eu me orgulho de não ser uma professora assim e imagino que quando o professor é desse tipo, a recusa às sugestões deve aumentar. E sempre vai ter um bom número de alunos chateados ou mordidos, pensando que o professor não sabe nada. Às vezes não é o caso, inclusive pode acontecer de o professor ser um super autor, mas não é porque a pessoa sabe alguma coisa que ela sabe ou tem interesse em ensinar.
Mas já me distanciei demais do assunto que me trouxe até o texto de hoje – muito embora eu me permita fazer isso aqui na Newsletter, porque escrevendo aqui eu me sinto batendo papo com vocês, e às vezes vou fazendo digressões, como acontece em conversas boas. Fico à vontade, sabe? Mas o que me trouxe até aqui foi este pensamento simples que começou por conta do Ressoa e que levei para a minha vida: é uma arte saber quando acatar e quando recusar conselho ou opinião sobre algo que nos diz respeito.
Sempre tive antipatia desse discurso muito comum de que não devemos dar ouvido aos outros, de que precisamos fazer as coisas do nosso jeito, que a vida é nossa e ninguém tem nada com isso etc. Claro, a vida é nossa, mas vamos lá, não estamos sozinhos, não somos uma ilha e é comum que o outro tenha algo a acrescentar. E uma coisa é levar o olhar do outro em consideração, e outra bem diferente é se perder no olhar do outro. Será que a pessoa que se fecha totalmente às visões dos outros sobre si teme se perder totalmente se ouvi-los um pouco?
Talvez. Porque me parece mesmo uma arte saber o que acatar, saber o que jogar fora. Exige muita conexão consigo mesmo, com o que se está buscando naquele momento. Muita nitidez.
Às vezes, pasmem, é alguém com quem a gente nem vai muito com a cara que diz algo que bate na gente e que tem a ver. Já aconteceu com você?
Agora vou contar aqui um caso que eu já tinha prometido contar.
Tive uma relação de amizade intensa, mas breve, com uma mulher há alguns anos. Foi praticamente um affair mas sem a parte sexual, risos. Só amizade mesmo, mas aquela coisa de encantamento mútuo, sabe? Porém, um dia discutimos e cada uma foi para o seu lado.
Mas voltemos ao breve período em que fomos amigas. Naquela fase, saí com um homem casado. Foram apenas três ou quatro encontros, mas tudo muito intenso (sim, foi uma fase em que tudo na minha vida merecia esse adjetivo "intenso", haha). Contei isso para um amigo e esse amigo me deu um pito, disse para eu tomar cuidado para não me apaixonar, e disse ainda que eu mereço mais que isso, que o cara estava se aproveitando de mim.
Quando esse amigo me mandou essas mensagens com a percepção dele, eu estava num bar tomando uma cerveja com essa amiga e fiquei puta lendo aquilo, e desabafei com ela. Eu estava muito leve no pseudo-relacionamento com o cara casado e o que me deixou brava foi ser colocada pelo meu amigo nesse lugar da coitadinha, sabe? Da mulher que se envolve com um cara casado que é o garanhão e tá se dando bem. Falei com a minha amiga: o que esse meu amigo diria se fosse um amigo dele dizendo que estava saindo com uma mulher casada? Na certa diria: "Uhuu, isso aí". Se bobear, faria uma "piadinha" do tipo: “Ah, deve estar sendo mal comida em casa, e você tá resolvendo o problema dela". (Piadinha tola que acha que uma mulher satisfeita sexualmente não pode trair).
Coroei meu desabafo com um exemplo dos filmes pornôs. Quando num filme você tem um cara cercado por várias mulheres, ele está num harém. Se é uma mulher cercada por vários caras, ou ela está correndo perigo, ou, no caso de estar aproveitando, ela é uma vagabunda. Nas duas narrativas, só o homem está se dando bem, e a mulher é vista como alguém que está se dando mal. Claro, eu sei que o mundo está longe de ter equidade de gênero, mas esse exemplo me revolta desde a época da faculdade. Sempre que falo isso para algum cara, o cara fala: "Nooossa verdade".
Enfim. Minha amiga me ouviu com atenção e disse:
– Na narrativa predominante, sempre vão encontrar um jeito de colocar nós, mulheres, no lugar de quem está perdendo. É por isso que a gente não pode ficar pedindo muita opinião, é por isso que a gente tem que fazer as coisas do jeito que a gente acha melhor.
Isso fez muito sentido para mim.
Então, sim, que a gente dê ouvido aos outros, mas só uns 10%.
É isso. Serve como autora e como mulher.
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