A vida se vive, não se resolve
Se sabemos que somos incompletos, por que temos lidado tão mal com isso?
Então você achou que sua vida estaria resolvida quando você passasse naquele concurso/emagrecesse 10 quilos/se mudasse para as montanhas etc. Tente se conectar com aquele seu eu que tinha certeza que sua vida estaria completa quando você alcançasse isso. Pois é, você alcançou, mas não rolou.
Não estou dizendo que sua vida não possa ter melhorado: aliás, torço para que tenha melhorado, é ótima essa sensação de escolha certa, e é maravilhoso e importante quando a gente se conecta com os nossos desejos mais nossos e vai construindo uma vida na qual nos reconhecemos. Isso é um feito e tanto... Mas não vamos exagerar dizendo que você resolveu a sua vida, né? Pode admitir para mim: não resolveu.
Agora perceba que você tem/é muita coisa que muitas outras pessoas desejam ardentemente. Se você tem um filho, por exemplo, sabe quantas mulheres tentam engravidar? Se você já ganhou um prêmio, sabe quantas pessoas desejam ganhar esse prêmio? Se você tem cabelo comprido... Se você tem um pai presente... Costas que não doem etc. Você tem isso que tantos outros querem, mas você não se sente completo. O problema não é você que nunca está satisfeita: sua amiga também tem muitas coisas que outras pessoas desejam, seu primo, sua namorada, seu irmão, e pode perguntar, eles não sentem que a vida deles está completa (se eles responderem que sim, que a vida deles está completa, é porque você perguntou num momento em que eles estão muito felizes, então pergunte de novo daqui a algum tempo).
No meu último texto aqui, falei sobre incompletude, essa sensação de que nada nos basta, de que sempre estamos com algo faltando. Falei que é assim mesmo, não tem jeito, é assim que somos, e que podemos nos virar melhor ou pior com isso. Agora eu pergunto: por que temos nos virado tão mal?
O discurso de que existe algo que vai nos preencher totalmente anda muito disseminado de várias formas, em vários lugares (oi, redes sociais!) e com muita intensidade. "Você vai se sentir completo" é o subtexto de propaganda de batom a anúncio de viagem, passando pela superexposição de estilos de vida, corpos, rostos que você deseja. Nossos cardápios de desejos estão superexpostos, nos confundindo (eu realmente desejo tudo que aprendi a desejar?) e fazendo nossa boca salivar a todo momento por uma coisa diferente.
"Você vai se sentir completo" é também o subtexto de seitas e grupos fanáticos de toda espécie. Não queremos conviver com o rojão da incompletude, queremos soluções, e tem uma galera que se aproveita disso.
Ouvimos por aí: seu problema não é a incompletude, é que você ainda não tem 1 milhão de seguidores. Ou: é que você não fez o tratamento estético tal. É que você não conhece o nosso hotel. É que você não usa roupas legais. Você não tem uma relação amorosa legal. Você não tem o corpo legal. Você não tem a cabeça legal. O seu jeito de ser não é legal, o legal é ser como fulana e ciclana. Quando você estiver com isso e aquilo legal, aí sim sua vida vai começar...
É esta uma das armadilhas ontológicas da subjetividade contemporânea: acharmos que, quando acontecer isso ou aquilo, nossa vida vai começar. É o mesmo que dizer: nos sentiremos preenchidos. Sentiremos que “chegamos lá”.
Se você tem o hábito de ler livros ou peças de teatro de autores antigos e de outras culturas, sabe que nem sempre esse modo de se relacionar com a vida foi tão comum. Há outras subjetividades possíveis e é legal se lembrar disso. A insatisfação constante não é um mal-estar característico de todas as culturas e em todas as épocas. É um mal-estar muito presente hoje, que acaba moldando a nossa subjetividade hoje. Escapar desse modo de olhar e estar no mundo não é fácil, porque somos bombardeados por ele, mas pode ser uma das coisas mais interessantes que podemos fazer.
Existe um fio que nos conduz a um estado de espírito mais apaziguado?
Acho que existem fios, no plural. E um deles é o prazer. O prazer, não o vício, a compulsão, a descarga, que talvez sejam formas mais toscas, mais primitivas de prazer.
Se a gente não cuida, acaba entrando no que eu chamo de modo máquina e vivendo no automático, reféns passivos e nervosos de todos esses discursos tão comuns na nossa época. Quando a gente vira refém de um discurso, passamos a operar internamente de acordo com ele, sem muito espaço para autonomia, que dirá poesia.
Recentemente, falando no meu podcast A gente vai se falando sobre esse tema, como encontrar prazer no dia a dia (dá para ouvir o episódio aqui), perguntei: o que você já gostou de fazer e tirou da sua vida completamente? Pense em maneiras de preencher o tempo, atividades que te enchiam de prazer simples e alegre. Atividades que podem ser muito simples, como ir sozinha ao cinema, bater papo sem hora para acabar com aquela amiga, ter uma turma para jogar vôlei, ou retomar o hábito de ler romances com xícara de chá e tempo…
Lembre-se de quando você experimentou a sensação de desfrutar… de ter deleite, de fruição, ah, a sensação de fruição…
Que tal encontrar nessas atividades um guia para se sentir melhor? Para se reconectar com a sensação de estar vivo?
Momentos em que somos irradiados pela sensação de estar vivo: é sobre isso, no final das contas.
Para não vivermos com a ânsia de “chegar lá”, precisamos sentir a vida que está aqui. Não ficamos esperando a vida começar quando somos capazes de sentir que ela já começou, que está acontecendo. Se a gente não sente isso, se a gente acha que a nossa vida de verdade ainda não começou, é porque estamos desconectados dela.
Ficamos tentando chegar lá, mas o que nos apazigua é o prazer de estar aqui.
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Tão verdadeiro! A pandemia e algumas perdas me fizeram pensar cada vez mais nisso. No saber perceber o prazer de agora, as pequenas alegrias de cada dias (mesmo quando eles são tristes) e não deixar pra apostar no que vem amanhã. A vida de agora é tão mais urgente, né? Às vezes passamos uma vida inteira procurando esse depois que nunca vem sem nos darmos conta de que os pequenos prazeres são agora.