Ah, a vontade de largar tudo... O trabalho, sim, mas até os vínculos mais caros, a nossa casa que pode ser boa, mas é a casa de sempre. Para a vontade de largar tudo, o nosso mundo já nos é conhecido demais, é de uma repetição sem sentido, os outros já não têm muito a nos acrescentar, cada encontro pesa. A vizinhança, a cidade, as tarefas todas, os horários... Só queremos nos livrar, ir para longe, sumir. De vez em quando até enjoo dos meus desejos: ah, não é possível que até hoje eu queira isto e aquilo! A vontade de largar tudo inclui a urgência de desejos novos, de esquecer os desejos que já nos cansaram tanto. A vontade de largar tudo é uma vontade funda de mudança, de começar tudo de novo. Parece uma vontade de abandono, mas é uma vontade de vida, vida fresca. A vontade de largar tudo é uma vontade de frescor. É um cansaço que não se acomodou, um cansaço que decidiu fazer as malas. Outro dia, uma aluna da minha oficina Ressoa escreveu uma frase tão tocante: "Mas é que eu devia ao meu coração um pouco de egoísmo". A vontade de largar tudo me parece de um egoísmo tão sadio...
Mas não largamos tudo, é claro. Com o tempo, aprendemos que há as vontades que duram e as vontades que passam rápido, e que seria um horror confundir as duas.
A vontade de largar tudo passa rápido, mas cobra um preço para passar. Ela exige o novo aqui, agora. As transformações necessárias. As conversas, as coragens todas, as decisões. Os prazeres de volta ou nada feito. E também a seriedade: a vontade de largar tudo exige que o sério volte a ser o tom de tudo que é sério para nós. E que o deleite dê o tom dos momentos de deleite.
Depois que a vontade de largar tudo passa, vem a necessidade profunda de estar acompanhado. Pelos outros e por nós mesmos. Por vínculos e também silêncios. Silêncios novos, desses que abrem espaço para uma vida verdadeiramente sentida.
Não queremos estar acompanhados só pelo novo. Queremos a nossa história de vida e as nossas mudanças, nossas testemunhas e cúmplices de sempre e nossas novas companhias. Queremos aprendizados e novidades, e também certos esquecimentos. Queremos nossa casa e nossas viagens. Ficamos, dispostos a não esmorecer. Ficamos, decididos a desfrutar. Ficamos, decidindo com alguma lucidez, todos os dias, o que fica conosco e o que sai. O que diminui, o que cresce. Tudo o que está sobrando, tudo que está faltando, tudo que nos resta.
O que queremos mesmo é renovar ficando.
** Estou com inscrições abertas para uma aula única de escrita, que vai ser num sábado à tarde, dia 29 de julho. Vem saber mais!
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Lili, quero dizer que aqui bateu tão forte suas palavras que elas me acompanharam da terapia e deu muitos insights incríveis.
Perfeito! Me encontro nesse exato momento de vida e ler isso nas suas palavras é um efeito calmante. Adorei :)