Abraçar as contradições
E chegar mais perto de respostas boas para a pergunta "Quem sou eu?"
Se inventei que sou uma pessoa calma, então caio em desespero quando fico nervosa. Se me defino como boa, perco o chão quando me percebo egoísta. Se sou a louquinha, como bancar essa minha vontade tão convencional que apareceu outro dia? Um jeito: finjo que não, não estou nervosa (afinal, sou calma), que não estou sendo egoísta (afinal, sou boa), que não estou tendo essa vontade convencional (afinal, sou louquinha). Outro jeito: aceitar que sou de tudo um pouco, um caos que vou organizando na medida do possível, um eu que não é fixo, uma parte conhecida e uma parte misteriosa. Não simplesmente aceitar, mas abraçar as próprias contradições e flutuações costuma ser libertador.
Para que tanta tentativa de rigidez, afinal? Se não somos um personagem, não somos uma imagem, se não precisamos assinar em três vias com firma reconhecida cada sentimento, desejo, pensamento que se passa aqui dentro?
Como esperar que os nossos pensamentos e vontades sejam os mesmos quando estamos descansadas e quando estamos exaustas? Ou como cobrar de nós que sejamos o tempo todo aquilo que achamos que os outros acham de nós?
Eu tinha uma amiga que costumava dizer que era muito de bem com a vida. Era como uma bandeira para ela: ser de bem com a vida era algo importante, era como as pessoas deveriam ser. Ela parecia alegre? Parecia, mas não o tempo todo. Aliás, sinceramente, outras pessoas que não diziam que são de bem com a vida me pareciam mais de bem com a vida do que ela. E outras pessoas que, como ela, se diziam de bem com a vida, me pareciam mesmo ser de bem com a vida. O que não significa que elas eram de bem com a vida o tempo todo, claro, mas de modo geral elas talvez fossem acima da média no que diz respeito a humor, leveza, disposição, vontade de levantar da cama de manhã.
Pois bem. Essa minha amiga, um dia, me contou revoltada que tinha descoberto que não, ela não era assim tão de bem com a vida como há muito pensava que fosse. Não é que sou ranzinza, ela disse, mas quer saber, entre de bem com a vida e ranzinza, acho que sou mais para ranzinza. Infelizmente, parece que sou ressentida também. Quem eu sou, afinal?
O bonito é que, quando ela se viu como ranzinza e ressentida, ela primeiro levou um susto, mas depois passou a ter mais momentos em que se sentia de bem com a vida.
Esse texto é tipo um abraço quentinho nessa quarta cinza de outono!
não dá para ser de bem com a vida o tempo tempo...