Quando preciso escrever um texto e estou num dia preguiçoso, combino comigo mesma: só vou fazer um esboço. É esse pensamento que me dá energia para abrir o computador e começar o texto. Não vou entregar o texto naquele dia, não vou postá-lo aqui na minha newsletter nem em lugar nenhum, então tudo bem o começo ser meio capenga, o assunto acabar no meio, o final ficar meio desconjuntado. É só um esboço, e isso quer dizer que aquele texto não está vestido para receber visita, talvez nem esteja de banho tomado – é um texto com roupa de ficar em casa, descabelado, com remela no olho e que ainda não escovou os dentes.
É incrível a habilidade humana de enrolar mesmo quando é para fazer alguma coisa que adoramos – no meu caso, escrever.
Se estou entusiasmada com a escrita de um novo livro, aí é o contrário – atrapalho outras atividades, me atraso, perco a hora de dormir, tudo para sentar em paz na frente do computador e trabalhar no meu livro. Fui abraçada por esse estado de espírito no último mês em praticamente toda vez que sentei para trabalhar no romance breve que eu estava escrevendo: na verdade, eu já começava o meu dia pensando nele e, assim que tinha oportunidade, corria para ele. Foi memorável uma sexta-feira em que me vi com três horas totalmente livres pela frente. Dediquei cada um desses minutos à escrita desse livro.
Porém, mesmo para esse livro que tanto amei escrever – terminei semana passada e estou sentindo muita falta da companhia dele –, enrolei para começar. Eu já estava pensando na história havia quase um mês, pensando em como eu desenvolveria a situação inicial, no que a minha protagonista gostava de fazer no tempo livre, esse tipo de coisa, quando decidi: já tenho o suficiente para começar. Aí começou a enrolação. Começar um livro entra no mesmo pacote mental de começar a academia, ir no posto tomar vacina, renovar a CNH, separar os papéis para o imposto de renda. Vou enrolando, até não ter mais jeito. O “não ter mais jeito” pode ser uma janela de tempo que se abriu à minha frente: agora não me resta mais nada, a não ser, finalmente, começar o projeto a que eu mesma me propus – no caso, escrever esse romance.
No momento em que comecei a escrevê-lo, logo no primeiro parágrafo, algumas dúvidas e uns problemas na história já pareceram. Ou seja, eu não tinha enrolado à toa: no fundo, sabia que na minha cabeça a história estava redondinha e que, no papel, a realidade iria se impor, com tudo o que faltava criar para desenvolver aquela história e transformá-la no livro que eu queria.
O início da escrita de um livro geralmente esfrega na minha cara a distância entre a história imaginada e a história que realmente será contada naquele livro, e levo algumas páginas para entender melhor do que se trata. Essas páginas exigem o difícil trabalho de escrever sem saber exatamente sobre o que se está escrevendo, ouvir a história, senti-la, ir criando e me conectando com o que estou criando. Cada linha é um salto num local estranho e mal-iluminado, e vou enxergando melhor a paisagem à medida que escrevo. Para começar a me divertir e até me viciar no processo, demora um pouco. O início de um livro é como um primeiro encontro para os tímidos, você quer estar lá, mas dá uma insegurança, a situação exige. Quando começo a escrever um livro, me sinto mais ou menos como se estivesse aprendendo um jogo novo, com a diferença de que não há ninguém me explicando as regras: eu mesma vou, sozinha, entendendo do que se trata.
O que me salvou quando sentei para começar esse romance breve (ou novela) foi isto: decidir que seria só um esboço. Ou seja, que bastava eu começar, resolvendo algumas lacunas e deixando outras em aberto, até ter pelo menos meia página – a meta foi modesta. Acabei escrevendo uma página inteira, como geralmente acontece – estabeleço o mínimo e acabo fazendo um pouco mais que o mínimo. Fechei o computador satisfeita. Na manhã seguinte, não enrolei: estava ansiosa para ver o que havia escrito no dia anterior, uma criança louca para ver o que ela mesma tinha aprontado. Gostei médio, e fiquei arrumando aquelas linhas até gostar muito. Só depois de fazer isso, escrevi mais um pouco. Reli esse novo trecho no dia seguinte, fiz alterações nele e escrevi mais um pouco. E foi assim que acabei sendo alegremente capturada por esse livro, que nunca mais precisei enrolar, até a última página.
Com os famigerados “jobs”, nem sempre o final é tão feliz. Às vezes, a procrastinação te acompanha no processo inteiro. É que você não queria fazer aquele troço, você só precisa fazer por causa do dinheiro, e só levanta a bunda da cadeira por conta do prazo. A certa altura da minha vida, felizmente, pude parar de pegar jobs que detesto. Só pego trabalhos em que eu encontre algum prazer, algum sentido. Leitura crítica, por exemplo: só pego se vejo que o livro tem a ver comigo, que vai rolar uma troca boa no processo. Aí, geralmente, padeço da enrolação só para começar. Igual os textos desta newsletter, aliás: enrolo só para começar. Depois fica fácil e, quase sempre, prazeroso.
No caso dos jobs, não vou mentir dizendo que alcanço o mesmo prazer que no trabalho autoral. Não, né? Escrever o que me dá na telha é meu prazer maior. Mesmo se eu quiser escrever um clichê, por exemplo, como a expressão “dar na telha”. Quero usar essa expressão? Pois então digito toda feliz: escrever o que me dá na telha o que me dá na telha o que me dá na telha o que me dá na telha o que me dá na telha
Muitas vezes, mesmo no texto não autoral, ou seja, no texto que estou escrevendo para um cliente, chega uma hora que a coisa vira um trabalho sem esforço, um fluxo que tampa o passar do tempo – quando vejo, acabei o que precisava entregar. Também tem a alegria de ver o trabalho pronto, de o cliente gostar. É uma alegria, sem dúvida. E a alegria do fim: finalmente, terminei. Essa alegria, eu sinto mesmo quando terminei de escrever um livro como esse que terminei agora, um livro que me acompanhou tanto, que eu não queria que chegasse ao fim. Pois chegou e fiquei feliz. É assim.
Por falta do tempo, já que tenho um ghost para terminar logo mais, o final deste texto não vai passar deste esboço, desculpem.
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