Jovem, recém-mãe e deprimida
O filme "Respire fundo" começa com um aviso: pode ser inquietante para pessoas ansiosas ou com depressão
Ela é jovem, casada e recém-mãe. Mora num apartamento gostosinho, é uma ilustradora talentosa, conta com carinho e ajuda para cuidar do seu bebê. Muitos diriam que ela tem uma vida tranquila. Que ela "deveria" estar feliz. Mas num momento em que o filho está brincando e assistindo TV, e que a cunhada telefona dizendo que está a caminho para bater papo e ajudar, ela tenta se matar. Assim começa o filme Respire fundo, em que Amanda Seyfried interpreta lindamente Julie, a autora e jovem mãe deprimida. Julie toma antidepressivo, mas isso não a faz se sentir muito melhor, embora, com sua meiguice contínua, ela garanta o tempo todo que sim, está tudo bem comigo, gente, eu estou bem.
(Curiosidade: a própria Amanda Seyfried conta em entrevista que toma antidepressivo há 11 anos.)
Dá para entender por que, quando você procura pelo filme no Google, aparece que apenas 40% das pessoas gostaram dele. É um filme pra baixo, desses em que o desfecho não alivia. Além disso, para muita gente, deve ser difícil aceitar que uma mulher tão nova, tão bonita, com um marido legal etc esteja sofrendo um bocado. E é um filme lento. Não é um filme arrastado, pelo menos para mim, mas é um pouco... pastoso, sem vitalidade, como a própria Julie está se sentindo.
Já tive depressão, tomei antidepressivo por um ano e estou entre aqueles que se identificaram com a protagonista e também entre aqueles que ficaram com o coração cortado com o esforço que ela faz para se sentir melhor, com sua tentativa constante de "virar a chavinha"e “ficar feliz”.
Em determinado momento, a mãe diz a Julie que ela consegue, que ela é capaz de vencer a depressão, de se sentir melhor. Mas infelizmente não é assim tão simples. Julie não tem muitos recursos para dar um contorno à sua dor, para usar a expressão de uma seguidora do Instagram quando conversamos sobre o filme. À sua volta, ela encontra pessoas que são bem-intencionadas, que querem vê-la bem, mas que não fazem ideia do que é uma depressão. A doença é vista como um problema quase que externo à doente: existe a Julie e a depressão da Julie, como se a depressão fosse um mosquito irritante que fica em volta dela e de todos ali. Não há interesse nem de Julie nem de ninguém pela depressão de Julie: a depressão é vista como um problema que não deveria estar ali. Intoxicada por tanto eu e por tanto passado, Julie não faz ideia não só de como atenuar sua dor, mas de como se reconectar com a vida, de como voltar a ver alguma graça nas coisas. Ela sabe que não tem vontade de nada, sabe que está afogada em mal-estar, mas procura ligar o motor no tranco e ir seguindo. Sem energia, como é próprio da depressão, ela acaba tendo uma relação passiva com seu transtorno mental, que vai tragando-a mais e mais.
Da mesma forma, ressignificar o passado difícil com o pai parece impossível: Julie vai sendo como que atropelada pelas experiências dolorosas que já viveu, assim como vai sendo atropelada pelas tarefas, pelas expectativas silenciosas que o marido, a mãe e a cunhada têm sobre ela, pela rotina que vai sendo construída quase que à sua revelia, ainda que ela seja muito carinhosa, inventiva, talentosa. Julie vai passando como que um fantasma pelo dia dela, meio etérea, disfarçando as lágrimas e se controlando para não implodir totalmente.
É como se Júlia nunca sentisse raiva de nada, nem irritação. Ela também não reivindica um dia mais ao seu gosto, uma rotina mais à sua maneira. Talvez ela nem saiba como seria essa vida. Os sentimentos que exigem um pouco mais de vigor foram desligados e resta apenas um cansaço contínuo. Me lembrou o cansaço de Claudia, personagem do meu livro Três Viúvas: "Ela estava acostumada a sentir um cansaço sem fim, esse cansaço que não se desmancha à noite sobre a cama, esse cansaço que não acaba ao dormir e que não se renova no dia seguinte: era sempre o mesmo cansaço, reaproveitado, relavado, reciclado, uma linha contínua que abraça e se funde à cama sem graça e sem prazer".
Dá muita vontade de saber mais sobre como Julie era na adolescência ou no início da fase adulta, para além dos espasmos de memória infantil.
Eu ficava assistindo ao filme e pensando: puxa vida, a Julie nunca é verdadeiramente escutada. Não há profundidade nas conversas sobre o assunto, logo no início do filme o marido e o concunhado fazem de tudo para evitar uma conversa sobre o “episódio” em que ela tentou tirar a própria vida. Os familiares ficam tristes por vê-la daquele jeito, mas não têm ideia do que se passa com ela. Ninguém ali lê sobre depressão ou tenta ir mais a fundo no assunto. Vão atrás de um psiquiatra, mas, de modo geral, acham que tudo que Julie tem a fazer é tomar o remédio e tentar ficar feliz. É quase como se dissessem: "Te amamos, Julie, agora faz uma forcinha pra ficar legal, vai". Podemos culpá-los? Não, eles querem o melhor para ela, só não fazem ideia de como fazer isso. A gente fica com a pergunta: é uma doença implacável, ou poderia te ganhado outros direcionamentos no caso de Julie?
É de apertar o coração ver Julie definhando sem ganhar mais intimidade com seu mundo interior, sem se aproximar do seu universo mais íntimo, sem falar sobre si com alguém, sem puxar algum fio de prazer mundano que, talvez, a conduzisse a uma vida que fizesse um pouco mais de sentido para ela, a uma rotina que soasse um pouco mais envolvente. Para mim, é como se ela dissesse: "É, eu tenho que dar um jeito de gostar disso aqui". É o que mãe, marido e cunhada esperam dela. Apesar de ilustradora talentosa, há pouco espaço para o autoral em sua vida. O médico de Julie é legal, do tipo amigão, e ele lê para ela um poema da Sylvia Plath e tudo, mas tudo indica que ela o vê só de vez em quando e os momentos de conversa entre os dois me pareceram superficiais: “Quando você começou a se sentir assim? Ah, tá”.
Julie é tão talentosa, mas a arte não ocupa um espaço central na sua vida. Quando ela conta sobre as ilustrações e as histórias que cria, o marido a ouve sem ouvir, é como se a arte dela fosse um hobby sem importância. Ela não é estimulada a se agarrar a algum projeto que lhe desse um pouco de sustância existencial, porque é claro que a maternidade não bastava, pelo contrário: a maternidade a extenuava. Mas era como se ela tivesse que dar conta daquele script: ficar boa logo e tocar a vida como uma pessoa "normal".
A depressão é uma doença complexa, multifatorial. Andrew Solomon, autor do premiado O Demônio do Meio-Dia (Companhia das Letras), livro sobre depressão, escreve: “Eu me perguntava: é um problema químico ou físico? É preciso uma cura química ou filosófica? E não conseguia encontrar uma resposta. Até que entendi que não estamos suficientemente avançados em nenhuma dessas áreas para explicar as coisas totalmente. Tanto a cura química quanto a psicológica têm seu papel.” Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, afirma numa matéria que editei que tem consciência de que o caminho para o controle da depressão ocorre na esfera do individual, do particular, do único.
Lembro de uma psiquiatra que entrevistei uma vez que afirmou: os antidepressivos amenizam os sintomas, mas não curam.
O que cura uma depressão? O que é capaz de transformar alguém verdadeiramente?
Acredito que não existam duas depressões iguais, ainda que os sintomas possam ser semelhantes. O filme me fez lembrar como a depressão é terrivelmente solitária, e como a possibilidade ou não de saída do túnel mora mesmo na singularidade. Existem tratamentos, mas não há fórmulas.
Gosto muito da Amanda Seyfried e lembro que dei play nesse filme sem pensar muito no que estava prestes a assistir. Terminei com essa mesma sensação de quem ninguém parecia verdadeiramente interessado em escutar o que ela tinha ali dentro. Ao mesmo tempo, o filme é de uma delicadeza imensa pra tratar de uma coisa tão profunda e dolorosa, né?
Gostei do enredo do filme, vou assistir em breve. Tive depressão pós-parto e foi um terror!!! Ontem mesmo eu estava pensando sobre "estar sozinho" e uso essa expressão justamente porque acredito que solidão é algo que deve ser cultivado com serenidade, ou seja, é preciso aprender a apreciar a própria companhia. Solidão, ao meu ver e neste conceito que trouxe, está faltando nos dias de hoje. Aquela solidão que te permite reconectar consigo mesmo. O que está sobrando, inclusive online é "estar sozinho".