É claro que ninguém em sã consciência vai recomendar a lata de lixo como destino para aqueles livros dos quais, por qualquer motivo, decidimos nos desfazer. A despedida de um livro consiste em doá-lo. Aqui em casa, é o que faço com os livros que não pretendo ler ou que já li e não pretendo reler as partes grifadas.
Uma vez, levei mais de uma dezena de exemplares para minha ex-cunhada, quando fui pegar minha filha na casa dela. Tinha uma época em que eu aproveitava as idas ao supermercado ou à farmácia para depositar dois ou três na pequena prateleira instalada na parede lateral de uma loja de roupas na rua de cima. Já deixei um livro numa prateleira também de doação numa UBS, e me arrependo de, há alguns anos, ter respondido “Ah, sim, vou mandar alguns” ao e-mail de um bibliotecário me pedindo doações e ter esquecido completamente. Em 2019, antes de me mudar, fiz uma limpeza geral: doei 200 livros e vendi outros 300. Só fiquei com aqueles que eu queria mesmo que me acompannhassem.
Livros são doados. Não gostaria de ser surpreendida, no meio de uma conversa simpática, pela descoberta que meu interlocutor tem o costume de jogar livros no lixo. Lamento pelos leitores que se desencontraram de livros em bom estado porque seus antigos donos acharam por bem jogá-los na lixeira. Assim eu organizava meu mundo.
E então, numa noite qualquer, tomando uma sopa no sofá, ligo a televisão e lá está uma moça falando num tom comovido e sábio no programa Provocações, da TV Cultura. Vou com a cara da moça. Ouço-a por um tempo e descubro que se trata de Eliane Dias, empresária do Racionais MC’s.
De repente, Eliane conta que, mais jovem, buscava lavagem para porcos com seu Juca, marido de Dona Maria, quando viu um livro ali, no lixo, e o pegou sem pensar muito. “Graças a Deus”, ela diz em seguida. “Graças ao universo…”. O livro era Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Foi o primeiro livro que Eliane leu na vida e acabou marcando-a profundamente. É bonito como ela se emociona ao falar do livro. Também fui marcada profundamente por ele, provavelmente por alguns motivos semelhantes aos de Eliane e outros diferentes, mas a escrita da autora também aconteceu em mim. Posso sentir um fio invisível ligando nós três – Eliane, Carolina e eu.
Desligo a TV. Inquieta, quase perturbada, mas também satisfeita. Às vezes faço isso, desligo a TV, ou então fecho o livro ou os olhos no momento mais forte, como um corte lacaniano. Meu mundo organizado se expandindo em um leve tremor. Quero acomodar melhor esses tremores dentro de mim, e por isso fecho, desligo, faço uma pausa, respiro.
É claro que ninguém em sã consciência vai recomendar a lata de lixo como destino para aqueles livros dos quais, por qualquer motivo, decidimos nos desfazer. Claro, estou de acordo. Mas ali, nos espaços não tão nítidos da existência, os acontecimentos também se locomovem. Rebeldes à nossa vontade de ordem, ganham vida. Nesse terreno habita o gesto do desconhecido que em insana consciência joga fora um livro.
A despedida de um livro consiste em doá-lo, mas suas páginas percorrem caminhos que nem sempre adivinhamos. Restam os tremores: da expansão do mundo organizado e também de um pequeno sorriso. Restam as generosidades providenciadas pelo acaso. A pessoa que se livrou do livro jamais saberá que seu gesto foi generoso para alguém. A (há) vida se movendo de uma maneira que não entendo.
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Um dos meus livros favoritos, "7 segredos da sincronicidade", traz diversas histórias reais de coincidências significativas e cheias dessa sensação de vida que se move de maneiras misteriosas. Uma delas me marcou muito e lembrei dela com esse texto. Um autor tinha um exemplar de seu próprio livro e ficava rabiscando e escrevendo anotações para si nas páginas, um grande caos que só fazia sentido pra ele. Perdeu o exemplar no metrô de NY e resmungou por dias por ter perdido algo tão precioso. Anos depois, o livro virou best-seller, fez um baita sucesso e o autor recebeu um convite para transformá-lo em filme. Então, durante uma conversa entre autor e produção, o diretor solta que se apaixonou pelo livro depois de encontrar um exemplar todo rabiscado e cheio de anotações no metrô de NY!!! Parece até ficção, né?
Nunca imaginaria o impacto positivo que um livro jogado no lixo poderia ter...