Apesar de ter se aposentado há mais de uma década, minha mãe tem os dias muito ocupados em Belo Horizonte, com atividades da igreja, trabalho voluntário, aulas de inglês, academia e tantas outras coisas. Quando vem a São Paulo me visitar, ela não costuma ficar mais de três dias. Quando eu disse que o Ricardo iria viajar por uma semana a trabalho e eu estava meio insegura de ficar cuidando do Vicente sem ele, ela falou: "Me fala os dias que você precisa que eu fique aí, que eu vou".
Quando ela me mandou mensagem avisando que tinha chegado, eu estava na rua com o Ricardo e o Vi. Sabíamos que ela chegaria no final da tarde, mas o sábado todo tinha sido de chuva, e quando o tempo abriu levamos o Vi para um rápido passeio. Imaginei minha mãe na portaria do meu prédio depois da longa viagem de ônibus e me arrependi, disse que estava voltando naquele minuto. Ela respondeu que eu podia levar o tempo que quisesse, ela já tinha subido para o apartamento e estava no banheiro, com uma toalha limpa na mão, pronta para tomar um banho.
Foi pisar na sala e sentir um cheiro bom de café fresco. Minha mãe, de banho tomado e café passado, me ofereceu uma xícara como se não fizesse quatro meses do nosso último encontro. Fui correndo abraçá-la, e ela largou a xícara na mesa para me corresponder, antes de se desvencilhar quase desesperada dos meus braços assim que viu o Vicente quieto no carrinho: meu Deus, como ele está enorme! Como está lindo, Vivi, é a sua vovó de BH, você lembra da vovó? Você lembra? Ele chorou, ela o pegou no colo mesmo assim, ele gritou, ela disse gargalhando que ele era um ingrato e voltou a tomar café.
Ela decidiu que precisávamos ir a uma certa loja de roupas, saímos os três. Não comprou nada, se empolgou mesmo com uma sandália que escolhi para mim: é linda, leva, leva! Depois de algumas tentativas frustradas, conseguiu pegar no colo o Vicente. Alertei que ele está muito pesado, minha mãe está com mais de setenta anos, mas ela não quis saber. Voltou para casa com o Vi no colo, eu empurrando o carrinho vazio e segurando a sacola com a minha sandália.
Falou com o Ricardo como se ele fizesse parte de nossas vidas desde a minha infância, embora tenham se visto até hoje nas três ou quatro vezes em que ela veio para SP ou fomos a BH. Ficou inconformada porque a Valentina estava na casa do pai. Mais tarde, quando a Valen chegou, ficou preocupada com a dificuldade que ela anda tendo em matemática. Passou quase três horas estudando matemática com ela.
No dia seguinte, descobriu que Valen adora suco de melancia, então foi para a rua e voltou com metade de uma melancia enorme. Almoçamos tomando suco fresco e cheiroso de melancia. Para o café da tarde, ela foi a uma padaria ótima que tem aqui perto de casa, mas que eu nunca me lembro que existe, porque tem três padarias mais próximas, e voltou com bolo cremoso de brigadeiro. No outro dia ela voltou com bolo de doce de leite e bolo indiano. Trouxe pão de queijo. Depois lembrou que a Valentina adora doce cremoso de limão e fez doce cremoso de limão. Lembrou que eu adoro curau e fez duas travessas de curau. A pia cheia de louças e panelas sujas num minuto, a pia todinha limpa e brilhando no minuto seguinte.
Em uma semana aqui em casa, minha mãe deu pitaco no meu esmalte e no meu cabelo, disse que eu me preocupo com bobagens, esclareceu que roupas eu devo usar mais e as que eu devo doar, e também me tranquilizou quando eu estava estressada, e riu do meu mau humor matinal. Abriu meu armário perguntando que casaco não estou usando mais e que posso dar para ela, me deu um vestido dela que eu tinha elogiado. Me censurou toda noite que peguei um copinho de cachaça depois que botei o Vi para dormir. Fez massagem nos meus pés quando falei que estava cansada.
Assisto a uma partida de vôlei com ela, ela vê um episódio de Masterchef comigo. Ela comenta o cabelo de todo mundo, a roupa de todo mundo, a voz. Está sempre comparando tudo com bichos: essa mesa parece um dinossauro deitado, esse sujeito aí tem cara de passarinho. Na hora em que mais quero prestar atenção é quando ela faz o comentário mais engraçado, e eu reclamo gargalhando. A todo momento, lembra de coisas aleatórias. Pergunta por que não falo mais com aquela vizinha que era minha amiga quando eu tinha nove anos de idade, lembra um episódio com um antigo ex-namorado meu que eu nem lembrava mais que existia.
Minha mãe passou o tempo todo fugindo da minha gata, regou plantas esquecidas, me lembrou que eu gosto de chá com leite, sempre chegava da rua com pão fresco, sumia pela casa com o Vicente para eu tomar café e comer bolo sem ele me chamar. Todas as noites, me ajudou e me atrapalhou a dar banho nele na mesma medida. Solucionou o hábito dele de ficar jogando brinquedos no chão durante o banho, encostando a banheira na pia; fazia as brincadeiras mais agitadas quando eu insistia que era momento de ele se acalmar, inventava ótimas maneiras de distraí-lo enquanto ele chorava pelado no trocador.
O cheiro de café fresco pelo menos cinco vezes por dia. A torcida empolgada assistindo aos jogos de vôlei na TV, as comemorações todas, as mãos levadas à cabeça. A barulheira dela jogando Jogo da vida com a Valentina enquanto preparo nosso jantar - "Não venha me enganar, garota, você não tinha tudo isso de dinheiro!”, “Eu tinha, vó, eu tinha!”. A ternura com que ela olha para o Vicente quando ele está sentado no chão, brincando. Ainda não parece cem por cento convencida da existência dele, mas ao mesmo tempo está absolutamente encantada.
Ela enche a casa com tantos sons alegres que me esqueço de como gosto do silêncio, e jamais entenderei como ela consegue me criticar e se meter na minha vida e ao mesmo tempo me fazer me sentir completamente aceita, completamente à vontade em ser quem eu sou.
Ela é a única pessoa para quem eu conto casos que já sei desde o início que não são engraçados, nem interessantes, nem acrescentam nada de nenhuma maneira. Eu sento e conto como foi a minha consulta com o dentista e ela escuta tudo com atenção, e comenta como é chato ir ao dentista, e pergunta coisas como se a mobília da sala de espera continua a mesma, e depois pergunta se o efeito da anestesia já passou e se eu já almocei.
No começo de maio, ela já pergunta se providenciei o vestido de festa junina da Valen. Todo Natal, ela traz na mala toalha de mesa decorada com papai Noel, arranjos dourados, miniaturas de anjinhos. No frio, me liga perguntando se estou de meias - “O frio entra pelos pés”. Pergunta por que estou rouca antes de eu reparar que estou rouca. Vive me pedindo para tomar mel com cúrcuma. Me lembra de fazer mamografia.
Quando ela está por perto, eu me dou conta de como mudei ao longo da vida, e de como no fundo sou a mesma de sempre, ainda que transformada.
Ela sabe tanta coisa de mim, mas outras tantas coisas ela nem imagina. Gosto de pensar que isso que ela nem imagina, ela compreenderia. Ainda que me desse uma bronca mesmo compreendendo, e fechasse a cara antes de me perguntar se eu quero um café.
Ela não sabe, mas, nesta semana aqui em casa, teve um dia em que olhei para ela e pensei que tudo bem ela ficar só por alguns dias, desde que não vá embora nunca. Eu sei que ela falaria para eu parar de pensar bobagem, mas às vezes eu penso bobagem, e às vezes eu preciso que ela prometa: que não vai embora nunca.
Que lindo Lili 🥹
Me lembrou daquele poema do Drummond:
“Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho”
Gostoso ser grão de milho 🌽🤍
Eu gosto tanto de como você traduz a vida. Vi tudo e até o cheiro de café eu senti! Mais um texto seu que é um abraço.