Na trilha de Rita Lee
Autobiografia da cantora é deliciosa, inspiradora e traz mil insights
Terminei hoje a leitura de Uma autobiografia da Rita Lee, editora Globolivros, capa laranjinha, e caramba, o livro escancara como é possível viver (e geralmente se vive?) várias vidas numa só. Essa é uma obra que poderia ser resumida de muitas formas diferentes. É a história da cantora, mas também da filha, irmã, amiga, esposa, mãe. Conta o mergulho de Rita em muitas drogas por muito tempo, idas e vindas, clínicas de reabilitação e coisa e tal, e também conta a sua convivência com bichos e seu interesse por discos-voadores. Temos ali raízes americanas e italianas misturadas com a cultura paulistana, uma mulher urbana que se sente uma caipira, uma boomer de espírito livre criada num caldo peculiar de tradição e irreverência.
Ao longo das quase trezentas páginas, sentimos a sede de vida que Rita tem, descobrimos suas molecagens, generosidades e algumas filhadaputagens (a pior, para mim, é o episódio da venda do apartamento em Higienópolis cheio de cupins). Sabemos dos vínculos carinhosos e das decepções, da disposição para a simplicidade hippie e para o requinte (como ela mesma canta: Não quero luxo nem lixo...). Às vezes, Rita é compreensiva demais, por exemplo, com o marido que fez sua irmã tão infeliz que ela acabou morrendo precocemente. Outras vezes, ela abraça a mágoa, é corrosiva nas críticas. Recebeu o diagnóstico de bipolaridade, mas jamais se definiu por ele. Assim como não se definia pelos vícios, nem pela maternidade, nem pelo casamento, apesar de vivenciar tudo isso com intensidade, de assumir esses vícios, ser mãezona, adorar o marido. Como ela poderia se definir por uma coisa só, se seu maior barato, talvez, fosse se assumir múltipla? No livro ela se permite ser complexa, abraça suas contradições. Tudo a ver com uma cantora que, na visão de ninguém menos que João Gilberto, cantava rock com voz de bossa nova.
Rita Lee fez muitas cirurgias, sofreu na cama de hospital. Curtiu muito sua vida sexual. Tinha, à sua maneira, uma enorme fé em Deus. Sentia alegria, sentia tristeza, permitia-se fazer um draminha nisso e levar na boa aquilo, sabia morrer de tédio e renascer na inspiração de um novo disco. A gente termina o livro com tanta sede de ser a gente mesma, tanto quanto Rita foi Rita. Acho que as pessoas e histórias inspiradoras em geral têm esse poder: ficamos loucos de vontade de sermos nós mesmos, ainda que sejamos totalmente diferentes daquela pessoa.
A escrita de Rita é descontraída, natural, e também tem bons momentos de poesia, de observações e conclusões profundas sem pretensão alguma. A maneira como ela descreve os familiares é saborosa e eficiente, em poucas linhas os enxergamos aqui do nosso lado. Com uma simplicidade difícil de alcançar ela fala de temas delicados, fases delicadas, vínculos delicados. Assume as mágoas sem medo. Dá a sua versão de como era fazer parte dos Mutantes, como foi ser expulsa da banda, como era o casamento meio de mentira com Arnaldo. Fala bem e fala mal da mesma pessoa ao narrar diferentes situações. Assim como gosta de algumas de suas músicas e avalia outras como "tolinhas".
Rita não é aquela que fica se fazendo de fodona, pelo contrário: fica a todo momento lembrando o leitor de seus pontos fracos. Muitas vezes pega pesado consigo mesma, mas sem se fazer de vítima: seus momentos de autodesdém têm um tom resignado. "Sempre soube da minha voz fraquinha e meio desafinada, sem potência alguma", ela escreve na página 244. "Cantar nunca foi natural para mim, dos pássaros eu sou o pardal (...). Minha lua em virgem só escuta os defeitos: o violão que ficou baixo, os vocais malfeitos, a virada de bateria fora do tempo, o arranjo equivocado, a letra chinfrim que constrangia. Alguns amigos dizem que me autodeprecio demais. Não sei, quero crer que eles é que me amam muito".
Como alguém que se vê assim, e que faz até a "maldade" consigo mesma de falar isso em público, conseguiu ir tão longe na carreira? A meu ver, Rita faz uma mágica com seus inúmeros momentos de falta de confiança no próprio taco: ela sabe que a autoestima está lá embaixo, mas não dá muita bola para isso. É um jeito interessante de lidar com a visão meio negativa de si: dá a impressão que ela não ficava tentando se automotivar, mas também não se deixava paralisar pela sua autocrítica ferrenha - tanto que virou Rita Lee. Ou seja, vira e mexe ela se detonava, fazia pouco do próprio talento, criticava sua voz, achava fracas as próprias composições, mas fazia o quê? Continuava compondo, continuava cantando, ia às reuniões, seguia adiante com as negociações, atendia os telefonemas, e usava as roupas que queria usar, performava, fechava-se no estúdio, assinava os contratos, saía em turnê. Tudo isso em se levar muito a sério, e ainda rindo, muitas vezes, de pessoas que se levavam muito a sério - ela não poupa nominalmente várias ao longo do livro. Uma coisa meio: não vou muito com a minha cara, não sou minha fã número um, mas e daí? Não vou deixar de fazer o que eu quero por conta disso. Uma esperta escapada do fundo do poço narcísico.
Hoje em dia, tem tanto discurso voltado principalmente para nós, mulheres, de "Confie em si mesma", "Você é ótima, incrível, maravilhosa, nunca errou", que quem não tem essa autoconfiança toda fica entre algumas saídas comuns. Ou se critica por não conseguir se achar maravilhosa, transformando o sofrimento inicial em um sofrimento duplo. Ou fica tentando ter autoconfiança e se frustrando toda hora, porque, convenhamos, não se passa de insegura a segura, não se muda uma chave profunda assim com discursos motivacionais. Ou fica girando em círculos neuróticos infinitos em questões relacionadas à própria vulnerabilidade e melancolia, como sofro, como tudo é difícil para mim, etc etc. Ou então, cria uma autoestima fake, delirante, uma máscara que deve ser muito cansativa, porque, no fundo, não houve transformação, a insegurança continua lá. Quanto gasto de energia tentando se enganar em vez de segurar o rojão de conviver com quem se é.
Em tempos de tantos discursos propagando jeitos "corretos" de se viver, delícia se inspirar com um livro de uma mulher que não tinha a autoconfiança nas alturas e que foi fodona assim mesmo. Em sua autobiografia, Rita poderia ter nos vendido somente a sua melhor versão, mas ela ofereceu muito mais do que isso: nos mostrou seu desenho pronto e seu rascunho, seu lado A e lado B. Zero marqueteira, muito artista.
Vi gente achando ruim que Rita passa rápido por algumas coisas, como detalhes de como as músicas foram feitas. Fazer o quê se, muitas vezes, ela não se lembra? Ela ia ficar inventando origens de músicas ou forçando a barra? Outras vezes, ela não parece interessada nesses detalhes, e vai narrando com gosto outros assuntos de seu interesse. Particularmente, acho isso maravilhoso. Rita podia ter se concentrado apenas nos aspectos relacionados à sua obra, seu processo criativo, datas checadas e rechecadas, seu currículo, contando uma narrativa mais CDF. Mas para que transformar sua autobiografia em ficha técnica quando se pode fazer um mosaico muito mais cativante e irreverente? Seu livro é envolvente porque sua escrita é assim, cheia de vida. Ao contar sua história, Rita divide conosco algo muito mais íntimo: a complexidade de uma pessoa que, antes de morrer, viveu.
**
Ainda dá para se inscrever no meu curso sobre a obra A descoberta do mundo, da Clarice Lispector. Vem!
Chorei
Chorei
Chorei
Amo a Rita Lee e ela representa muito na minha vida e na minha geração . Ela sempre foi para mim o q se viu na sua escrita : “ A gente termina o livro com tanta sede de ser a gente mesma, tanto quanto Rita foi Rita. “
. A gente termina o livro com tanta sede de ser a gente mesma, tanto quanto Rita foi Rita.