O desejo de ter milhões de leitores
O escritor perde a paz quando percebe que, tal qual uma startup, o seu negócio pode escalar
Sábado passado eu estava numa simpática doceria lá em Pinheiros, terminando de fazer anotações para a aula que daria logo mais na livraria em frente. Observo o meu entorno: são doze lugares. Se entra um décimo terceiro cliente, ele vai ter de esperar. Atrás do balcão de doces, a funcionária me parece cansada e tranquila. É a dona do estabelecimento? Não sei, faz de conta que é. Essa dona cansada e tranquila tem dias de doceria movimentada e de doceria mais vazia, mas não sofre com a expectativa de receber mais clientes do que ela dá conta. A não ser que ela tenha planos de transformar sua simpática doceria numa rede (ela não tem, conversei mentalmente com ela), temos ali um negócio que precisa ser próspero, mas não precisa crescer. Um negócio assim é pura paz na minha imaginação.
Seu negócio pode escalar? Então cuidado para não perder a sua paz. Vale para startups, vale para aspirantes a escritor. A diferença é que o pessoal das startups me parece ter a psique mais formatada para isso. Torcer pela grande virada é divertido para eles, estimulante. Uma espécie de jogo. Já o escritor costuma ser alguém mais angustiado. Transformar a nossa angústia existencial em ansiedade para escalar... Podemos sofrer demais quando entramos em jogos desse tipo.
Estou falando de escrever um livro esperando que ele venda milhões de exemplares, seja traduzido em trocentos idiomas, vire filme. Começar uma Newsletter/blog como esta aqui esperando milhões de views. Abrir uma conta no Instagram desejando milhões de seguidores/leitores. Gastar o tempo embaixo do chuveiro imaginando essas coisas em vez de pensar na vida... Ou de só sentir a água, mesmo.
Não é que esses desejos ambiciosos sejam "errados", seria até meio esquisito usar esse adjetivo para um desejo. Sem contar que vivemos numa sociedade que cultua o sucesso, é raro não desejá-lo, ao menos numa fase da vida. Para ser franca, se eu pudesse apertar um botão, eu teria milhões de leitores dos meus livros agora mesmo. Às vezes até me baixa uma persona mais estratégica que tenta pensar em maneiras de "bombar". Quem escreve ama o que faz e também quer ser lido, faz parte. A questão talvez seja o quanto esse desejo te toma.
No caso de sócios de startups, e mesmo de editores de editoras com perfil mais comercial, acho que o desejo de escalar pode deixar os dias mais prazerosos, além de trazer bons resultados financeiros. Mas eu mesma... Esse desejo não ocupa um espaço importante dentro de mim. Nas fases em que tentou ocupar, só me desgastei. E me atrapalhou a escrita, essa minha grande e fiel companheira. Quando minha ânsia por destaque ia tentando ganhar da ânsia de me expressar… Me desorganizei muito, me perdi. Ou estava desorganizada e por isso o desejo por destaque foi se alastrando. A liberdade é algo muito difícil de se conquistar e muito fácil de ser perdido. A gente se distrai e é capturado.
Sempre tenho algum aluno muito desejante do sucesso, desejo de "chegar lá", e costumo sugerir: concentre-se na sua escrita, ela é o mais longe que você pode chegar. Empenhe-se, desafie-se, releia, releia de novo, faça o seu melhor. Escrever cada vez melhor é o seu chegar lá. Inscreva-se em prêmios, tente publicar em editoras legais, faça contatos se tiver talento e paciência para isso, faça a sua parte na dimensão mais pragmática da coisa toda. Vivemos no mundo, não é? Mas não pense muito nisso, não deixe que a ambição grude na sua pele. É mais ou menos assim que sou com roupa e maquiagem. Adoro me arrumar de manhã. E passar o dia sem pensar nisso...
O dia em que vi meu livro "Ela queria amar, mas estava armada" na lista dos finalistas da categoria Contos do Prêmio Jabuti foi memorável. Queria ter ganhado, fiquei desapontada quando saiu a lista dos semifinalistas e eu já não estava lá. Mas o mau humor passou rapidinho, até porque algo me chamava no computador: o livro que eu estava escrevendo. Para mim, a maior graça de ser escritor, esse ofício tão complicado em tantos aspectos, é reverenciar a escrita na minha vida. A escrita me faz bem até quando me faz mal, até quando eu me perco no que estou escrevendo ou acho tudo uma porcaria. É um sentido, é meu jeito de estar no mundo, uma mão profundamente amiga, o meu amante de décadas. O vínculo que temos, a companhia que ela me faz. Conseguir expressar o que eu buscava e que tantas vezes nem sabia que buscava, sorrir com a frase bem cortada, a história bem contada, a história do jeito que eu queria, nesse mundo de tantos imperativos... Os meus pensamentos ganhando nitidez enquanto os parágrafos ganham corpo... Todas as coisas que vou descobrindo enquanto escrevo, talvez essa seja a melhor parte: todas as coisas sobre mim e sobre o mundo que vou descobrindo enquanto escrevo.
Ter a escrita no centro da vida me parece o caminho mais natural e menos sofrido para um escritor, ou pelo menos para esta escritora aqui. Não é que o sucesso não tenha valor, aliás, se tiver por aí algum editor legal disposto a apostar no meu livro novo, o de 1200 páginas... Me dá um alô. Saiba que vou fazer de tudo para o livro chegar a muitos leitores, vou fazer a minha parte. Mas... Se esse livro escalar, se for traduzido para dezenas de idiomas, se virar um – já pensou? – "Comer rezar amar"... Vou ficar observando essa escalada daqui do chão, mesmo.
Excesso de ambição me estressa, não vejo sentido. Não é esse o meu motor. Escrever é meu motor. Publicar é como preparar um jantar. Cozinhar para um ou vários convidados, não sei quantos vêm, mas vou preparar tudo do melhor jeito que eu posso.
Adorei o texto, Lili! Te acompanho desde sempre e é uma delicia poder receber suas ideias na minha caixa de entrada :)
Que bonito esse texto, gosto de sua simplicidade e objetividade para falar desse tema! Também gostei muito de te conhecer pessoalmente Lili!