O difícil novelo dos desejos contraditórios
Sobre essse negócio de querer X, mas sem abrir mão do Y
Outro dia, uma amiga comentou que, como escritora, o que a move não é ser reconhecida, ter fama, viver de direitos autorais, ter um mundo de leitores, nada disso. O que a move é o prazer de escrever, de se descobrir no que escreve, de perceber que está evoluindo no texto. Falei: muito bonito, amiga, agora fala a verdade: você quer ser reconhecida sim, e quer o prazer de escrever sim. Você quer viver de direitos autorais sim, e quer perceber que está evoluindo no texto sim. Por que um desejo excluiria o outro? Se ultimamente, aliás, a gente anda querendo tudo ao mesmo tempo. Se espalharam por aí que você pode tudo, só depende de você. Se vamos construindo nossa vida em volta do apetite do nosso eu e, bem, nosso eu é uma bagunça.
Uma parte sua quer um relacionamento gostoso, amoroso, quer dormir de conchinha toda noite, ter com quem dividir a pizza, ter alguém com quem programar o final de semana. Outra parte quer ficar sozinha, ter a cama inteira para si, acordar com o dia para si, ficar com alguém só se der na telha, liberdade. Uma parte quer uma carreira de verdade, outra não quer se preocupar com isso. Uma parte quer se vestir com um estilo bem clean, quiet luxury, outra quer exageros, quer brilho, purpurina. Uma parte quer morar, outra quer ser nômade. Uma quer estabilidade, outra quer aventura. E aí?
Como se não bastasse a luta tantas vezes inglória de descobrir quais são os nossos desejos mais verdadeiros, nossos desejos mais nossos, mais descontaminados pelos múltiplos estímulos do mundo lá fora, precisamos lidar com os nossos desejos mais contraditórios. Definitivamente, o eu é mais múltiplo do que parece, e a vida é muito mais caótica do que gostaríamos. Podemos culpar a educação que tivemos, a geração de que fazemos parte, o hipercapitalismo, as redes sociais, a sociedade contemporânea, o escambau - quem paga o pato somos nós, e tem dia em que topamos pagar, mas tem dia que nem queríamos que o pato estivesse lá.
Ser mãe, por exemplo. Um assunto que eu trouxe aqui outro dia e que trarei outras vezes, eu que fiquei grávida da minha filha aos 29 anos e do meu filho aos 41. Vicente nasceu em setembro do ano passado, a menos de um mês de eu completar 42 anos. Foi planejado, foi sonhado, mas quem disse que um planejamento é linear e que não temos muitos sonhos ao mesmo tempo? Depois que a Valentina nasceu, eu decidi mil vezes que só teria ela, e também decidi mil vezes que queria mais um filho. Pouco antes de me separar do pai dela, chegamos a tentar por poucos meses mais um bebê, e a ideia foi totalmente minha, que queria me separar do meu então marido e ter vida nova, e também queria ficar com ele e ter mais um filho. Me separei e às vezes me sentia tão feliz com a minha Valentina que pensava: puxa vida, queria ter outro filho. Mas eu também pensava: que coisa boa ela estar crescendo e eu não ter mais um bebê. Eu ficava muito feliz com a ideia de ter outro bebê, e também ficava muito aflita.
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Os anos foram se passando. Na minha cirurgia de remoção de tireoide, em fevereiro de 2021, o médico perguntou se eu pretendia ter mais um filho e eu disse que não. Na época, eu tinha dito ao meu analista que finalmente, depois de muito pensar, e depois de vacilar algumas vezes na contracepção com um ex-namorado e ter o susto de uma menstruação atrasada que depois acabou descendo, eu tinha decidido que não teria outro filho, que estava muito bem com 38 anos e uma filha só, e que num relacionamento futuro eu deixaria isso claro, se fosse o caso. Isso, de novo, foi em fevereiro de 2021. Em março do mesmo ano, conheço o Ricardo, me apaixono pelo Ricardo e depois de três meses de namoro começo a tomar ácido fólico para tentarmos ter um filho naquele ano mesmo. Eu acabaria engravidando em dezembro (e só fui descobrir no fim de fevereiro).
Quando Ricardo e eu estávamos tentando engravidar, eu lembro que ia à farmácia e, nas prateleiras de fraldas e fórmulas infantis, sentia arrepios. Olhava aqueles produtos e tinha certeza de que aquilo não cabia mais na minha vida, que aquilo era passado. Ao mesmo tempo, quando ia chegando o dia da menstruação descer, eu ficava super alegrinha, torcendo para ela não vir. Lembro que eu amava a liberdade que ser mãe de uma criança que já estava com 10 anos me proporcionava. E lembro que chorei lágrimas e lágrimas de uma alegria eufórica quando o resultado do teste de gravidez deu positivo.
Quando minha barriga começou a ficar grande, eu me lembro de me olhar no espelho de madrugada, quando me levantava para ir ao banheiro, e pensar: o quê? Grávida? Eu me lembro das preocupações que eu sentia, muitas relacionadas à minha idade, e lembro também da leveza absurdamente prazerosa que eu sentia - muitas relacionadas à minha idade? Vicente nasceu e eu sabia que ia ficar muito feliz vendo o rostinho dele pela primeira vez, mas o que eu senti na maternidade foi muito, muito maior do que a maior das minhas felicidades imaginadas.
Queremos e não queremos isso. Ou: queremos isso, mas também queremos aquilo. Escolhemos o sentimento e o desejo que predomina dentro de nós? Mas de que forma sabemos o que predomina, vamos anotando o que queremos na segunda, na terça e na quarta, tiramos o melhor de três na quinta? Achamos a vida complicada, mas queremos viver muitas vidas ao mesmo tempo? Perdemos a capacidade de escolher? Viramos todos librianos?
Uma vez li numa entrevista com o Contardo Calligaris: em toda vida que escolhemos, existe uma outra vida com a qual sonhar. Fiquei com isso na cabeça. Fui aprendendo a sonhar sonhos que agreguem à minha própria vida, em vez de chorar por vidas que não vivi e que talvez nunca vá viver. Fui aprendendo que algumas coisas são muito legais e fazem muito sentido para os outros, mas não para mim. Fui aprendendo a admirar sem desejar: posso admirar alguém por determinadas escolhas de vida e, ao mesmo tempo, me reconhecer mais em outras escolhas. Mas são aprendizados contínuos e com recuos e esquecimentos, pois sempre existem os dias de cansaço, nos quais a existência brilha menos que a força das frustrações.
Fui aprendendo a seguir com tudo por determinadas direções, mas me permitindo arrependimentos em momentos amargos, e me permitindo também as alegrias renovadas da manhãs seguintes. Não acho que exista apenas um caminho certo em cada área da nossa vida, existem caminhos, e eles sempre parecerão errados nos nossos momentos de desgosto, e bonitos em nossos momentos de reconciliação com a vida e com nós mesmos, com nossas ambições e nossas falhas, nossos erros e nossos acertos. O importante talvez seja agarrar nossos caminhos e seguir por eles, sem parar no passado ou nas infinitas possibilidades. Conectar-nos com o que faz sentido para nós, abraçar o que temos e o que queremos em vez de tudo que poderíamos ter ou ser. Olhar para o lado sem deixar de amar o que é nosso. Valorizar o momento presente, os rostos e vínculos que estão ao nosso lado, no nosso dia. Valorizar o nosso percurso, o nosso jeito de fazer as coisas, o nosso jeito de errar e a nossa vontade de acertar.
Eu não sei você, mas eu não quero dar um foda-se, ainda que às vezes eu só enxergue o pior lado de tudo. Eu acredito em Deus, eu sinto Deus, mas não sigo nenhuma religião, e normalmente é sozinha no quarto que choro e também que me fortaleço.
Talvez eu seja mais caótica do que você, ou talvez sejamos todos assim e lidemos cada um de uma forma com esses nossos desejos contraditórios. Não sei. Mas se tem uma coisa importante que aprendi, ou acho que aprendi, é: escolher sem olhar para trás. Ou sem olhar muito para trás. Olhar predominantemente para a frente, para seguir o caminho sem bater o carro.
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Semana que vem, terça à noite, vai ter encontrinho online com meus assinantes pagos sobre maternidade! Serão bem-vindas todas aquelas que quiserem bater papo sobre o assunto e desabafar, as que têm dúvidas sobre ser mãe e as que já são mães. Vai ser uma conversa descontraída tendo como base meu texto sobre os motivos para não ter filhos. Terça dia 5 de setembro às 20h. Eu vou mandar o link por aqui, dessa vez uns dias antes.
"Há mais de mil destinos em cada esquina
Outras vidas esperando em cada esquina
Há quase mil motivos pra gente ignorar
O que ouve o que vê em cada esquina"
Quando você falou dos caminhos e das possibilidades me vieram esses versos da canção.
eu precisava tanto ler esse texto hoje... s2