Leio no meu café da manhã: “A coisa mais certa que sabemos sobre a vida é que um dia ela chega ao fim. E, assim como os seres humanos, o que se sabe é que a ´vida´ do Sol também é um ciclo e também terá um final”. Um ciclo e um final para a espécie humana, um ciclo e um final para o Sol: caramba. Na sequência, ligam da portaria do condomínio perguntando se podem seguir para a minha casa com uma escavadeira. Respondo que sim, termino meu café, pego o Vicente no colo e vamos receber os seis homens que estão entrando com a escavadeira e também com uma serra elétrica, cordas, maletas com ferramentas.
Os homens começam a providenciar a queda do eucalipto de cerca de vinte metros que até então reinava no nosso quintal. Nunca pensei que um dia eu fosse encomendar a morte de um eucalipto, tudo devidamente autorizado pela prefeitura, mas ele estava perigando cair na nossa casa, o vizinho já tinha nos alertado. Era a gente ou o eucalipto, e, por mais que gostássemos do eucalipto, escolhemos a gente.
Enquanto os homens trabalham no quintal, arrumo o Vicente para a escola. O fim da humanidade, o fim do Sol: não importa que seja daqui a bilhões de anos, é esquisitíssimo pensar nesses finais, é algo que consegue ser vago e forte, não dou conta. Sinto-me razoavelmente preparada para pensar na minha finitude, e isso já não é tarefa simples, mas pensar na finitude da minha espécie, na vida neste planeta tal qual eu conheço? Como?
Entro com o Vicente no carro, olho o eucalipto sendo amordaçado. O que será que o eucalipto está sentindo? Como uma árvore vê o mundo? Dou a partida, olho meu filho brincando no banco de trás, sinto um amor tão fundo. Não adianta, eu não entendo nem a vida, nem a morte, nem o amor que sinto pelo meu filho, nem o amor que eu nem sabia que sentia pelo eucalipto do quintal. Às vezes eu queria seguir alguma religião, acreditar que nascemos por isso e por aquilo, e que depois da morte vai ser assim e assado, mas não sou religiosa. E não me venha com o big bang para explicar a vida, o big bang também não dá conta de explicar a existência, afinal, o que estava por trás da explosão? O que estava por trás do que estava por trás, o que sustenta?
E tudo que se passa dentro de mim, o que explica, e o que sustenta? Tem dias que acho que não vou dar conta, mas sempre dou, e muitas vezes com alegria, é impressionante.
Deixo o Vicente na escola, preciso passar no mercado, mas resolvo ir direto para casa. O eucalipto já está deitado no chão e agora os homens picotam seus galhos com a serra elétrica. Me comovo vendo o eucalipto caído e sendo destituído de seus membros, como sou capaz de comer carne? Vou te falar uma coisa: se eu vivesse de acordo com a minha alma, eu não conseguiria comer nem vegetais, se eu me deixasse comandar pelo meu coração eu não teria coragem de comer nada, acho que na verdade eu não conseguiria nem tocar em nada, é estranho pensar isso, mas, se eu vivesse de acordo com meu coração, acho que eu morreria.
Vou para o meu escritório, ligo o computador, abro o Zoom, dou bom dia para a minha aluna, começamos a aula. O texto é sobre o irmão dela, que morreu aos dois anos de idade. O meu bebê tem um ano e meio, impossível não pensar no meu bebê. Digo a mim mesma que não é meu bebê, é o irmão dela, na verdade faz de conta que não foi o irmão dela, concentre-se no texto. Quando dou por mim, estou cortando adjetivos e advérbios, reformulando frases, fazendo alterações na estrutura na história, vamos mudar o narrador? No fim da aula, estamos tão animadas, eu e minha aluna, foi bem gostoso mexer no texto, ver como o texto foi se modificando, se fortificando, o texto nos salvou, eu sei que não terá nos salvado para sempre, mas nos salvou naquela manhã, e somos gratas ao texto.
Fecho o computador, chego no quintal a tempo de ver o caminhão recebendo os últimos pedaços do eucalipto. Uma árvore de quase vinte metros despedaçada, a paisagem do quintal toda outra, o cheiro forte de eucalipto no ar. Vicente na escola, tenho uma hora livre até a próxima aula, depois do almoço trabalho no meu livro novo, no fim da tarde vou à academia. Tenho gostado de fazer esteira na academia, antes eu fazia só musculação. Corro na esteira e esqueço tudo, vidas e mortes, bebês e árvores, o último raio de sol sobre a Terra, o último ser humano a respirar, a última história a ser contada.
Sento suada e satisfeita no carro, olho as horas, preciso pegar o Vicente na escola, preciso passar no mercado.
—
Está chegando o dia do Inspira!, meu aulão de escrita criativa! Vai ser um minicurso de duas horas muito gostoso e útil para aprimorar a escrita e trabalhar as inseguranças. Vem fazer sua inscrição, vagas limitadas
7 Comentários
Mais 5 comentários...Nenhuma publicação
curioso esse paradoxo: se você vivesse com base no coração, morreria.
Lili, desde a primeira vez que li um texto seu me senti representada nessa angústia existencial! Como não pensar nisso aqui (sobretudo no acolá)? Como seguir dia após dia como se nada? Bom demais viajar nas suas palavras. De alguma forma estamos conectadas nesse mistério! ❤️