Quando meu analista morreu enquanto eu me gabava das tolices de sempre, quando meu analista morreu levei um susto e me perguntei o que eu tinha de fazer, o que seria da família dele o que seria de mim o que seríamos de todos nós. Na sequência me dei conta de que seu abdômen subia e descia, e então fui alcançada pela minha veloz raiva de nascença, peguei minha mochila, fui embora e nunca mais voltei.
Não faz muito tempo que meu último namoro terminou. Estávamos juntos havia quatro meses – foi meu relacionamento mais longo. Toda vez que ele não atendia uma ligação minha, primeiro eu pensava "ele deve estar ocupado" e em seguida eu concluía "pensando bem, ele está morto". Às vezes eu visualizava uma morte violenta, um acidente com o carro que ele não tinha, um tiro na cabeça vindo-se lá de onde – tudo é tão perigoso. Às vezes, era uma morte besta, um piso escorregadio, um milho de pipoca no pulmão – tudo é tão banal. Ele também vivia achando que eu estava morta e, às vezes, quando a gente encontrava o outro bem vivo, quase morria de susto. Até que não aguentamos mais tanto pavor da viuvez imaginária e terminamos. Nos primeiros dias sem ele, senti uma dor no peito, e depois uma espécie de relaxamento, e então essa dor e esse relaxamento se abraçaram num susto passivo que me sussurra de vez em quando até hoje: ufa, agora se ele morrer tanto faz!
Quando acordo, abro a porta do meu quarto e meus dois gatos estão lá me esperando. Em uma terça-feira, eles não estavam. Tive certeza de uma cruel morte dupla. No fim, eles só estavam dormindo no tapete da sala. Naquela noite, sonhei que abri o freezer e os vi congelados. Tomei um chá bem quente antes de dormir, mas então sonhei que os dois morreram num incêndio.
Tenho um filho de quatro anos (acho que o pai dele está vivo, mas não me lembro da cara dele). Toda vez que me ligavam da escola, eu atendia me preparando para a notícia de seu falecimento. Geralmente, meu filho não morre: falece. Minha voz delicada civilizada cansada dizia alô, minha cabeça se esmerava em cenas do corpinho dele ensanguentado no último degrau da escada que vai das salas ao parquinho, sempre achei aquela escada tão comprida, ou será que ele engasgou na hora do lanche e ninguém se deu conta a tempo, quem sabe o mesmo milho de pipoca que tentava assassinar meu ex-namorado pegou impulso na minha raiva de nascença que se juntou ao meu medo de nascença e virou um supermilho que está alcançando meu filho meu (ex) analista o pai do meu filho todos os meus ex-namorados e também o meu pai e minha mãe e meus avós e meu irmão e os meus amigos e muito mais gente agora neste exato momento em que termino essa parte um pouco maçante da minha pintura. Sou calígrafa e artista visual. Já passa das onze da noite. Vou trabalhar na parede desta clínica até de manhã cedo, antes de os funcionários chegarem. Eles chegam às oito. Se não tiverem morrido.
No fim das contas, quando a coordenadora da escola do meu filho me ligava, era sempre para falar de uma autorização que eu tinha esquecido de assinar, de um material que eu precisava comprar, enfim, de alguma coisa que não envolvia sangue, mas dinheiro ou tinta ou massinha. Quer dizer, um dia ela ligou para falar que ele havia levado uma cotovelada de um coleguinha e tinha ficado com o dente da frente mole, e sim, saiu sangue, mas veja, o dente já estava meio mole, naquela manhã mesmo ele havia comentado "mãe, meu dente tá meio mole", então não era o sangue de um dente rígido, esperançoso, cheio de vontade de mastigar e impedido pelas maldades e contingências, era só o sangue sem viço de um dente mole, um sangue sem vermelho que saía na forma de palavras pela boca da coordenadora enquanto lágrimas caíam pelo meu rosto contemplando em silêncio o fato de meu filho estar vivo. Um dia, não suportando mais aquelas ligações insensíveis da coordenadora, pedi que ela não me telefonasse nunca mais. Se precisasse falar comigo, que me mandasse e-mails. No assunto, qualquer palavra que não fosse "morte". Fui clara: "Só me telefone se ele morrer".
Fico pensando no que vai ser de mim se meu filho morrer. Eu não sei o que faria se isso acontecesse. Se os donos desta clínica morrerem, não vou receber por este painel. É por isso que prefiro quando pagam adiantado.
Um dia, quando eu era pequena, pensei que, se eu não desse trinta pulos, meu irmão iria morrer. Eu não sei por que pensei isso, meu irmão não estava nem sequer resfriado. De qualquer forma, dei os trinta pulos, não me custava nada. Porém, logo em seguida, concluí que precisava dar mais trinta pulos, e mais trinta, e mais trinta, até que acabei ficando sem forças, desmaiei e acordei com minha mãe me dando um copo d'água. Naquela época, eu e meu irmão éramos muito próximos. Ele cresceu e virou um chato, mas, pelo menos, ainda está vivo, ah, olha só, ele está vivo mesmo, acabou de curtir a foto do painel que eu postei agora há pouco.
Então o meu irmão curtiu uma foto minha. Meu filho está dormindo no sofá da sala de espera. Fui checar se ele está respirando: está. Não sei até quando, mas está. Meus gatos devem estar deitados no tapete da sala. Talvez meu (ex) analista esteja no cinema. Pode ser que meus pais estejam jantando e conversando sobre o cultivo das orquídeas. Meus pais adoram conversar sobre o cultivo das orquídeas, apesar de não cultivarem nenhuma. Agora, meu irmão talvez esteja começando a fazer sexo com a namorada dele. Meus amigos talvez tenham se esquecido de mim. Neste momento, isso não me preocupa. Estou trabalhando e esperando a pizza chegar. Tomara que o interfone não acorde meu filho. Se bem que, se ele acordar, me certificarei de que ele está vivo. Preciso acreditar que ninguém que eu conheço morrerá pela madrugada. Preciso adiantar boa parte deste painel. Estou sentada dando curtas pinceladas brancas na borda das pétalas dessas flores azuis. Estou amando o resultado. Essas flores não estão vivas. Posso amar essas flores. Da morte, sou íntima sem saber o que ela é, o amor é algo que eu conheço sem muita intimidade, e a vida, ah, a vida é assim mesmo.
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+ Este texto faz parte do meu livro Tem alguma coisa na água, edição independente
+ Estou com incrições abertas para o Ressoa! 7 dias para praticar a escrita comigo pelo WhatsApp. Vem saber mais!
e o mais doido é que, tentando me distrair de uma angústia similar à da protagonista, peguei o celular, abri o substack e caí direto nesse texto. assim que terminei de escrever esse comentário, notificações do whatsapp confirmando o quão ridícula era minha angústia.
seguimos vivos.