O que um quer, o que o outro quer
O maior desafio numa relação amorosa é conciliar os desejos
Uma vez, namorei um psicanalista que atendia num consultório que era uma casinha. Um dia ele veio conversar comigo sobre a possibilidade de comprar uma casona que funcionasse como nossa residência e consultório dele. Na época eu já dava aulas de escrita e falei: "Que legal, pode ter um cômodo bem gostoso para eu dar minhas aulas, né?". A resposta dele: "Pensei em usarmos um cômodo para eu atender, um cômodo para alugar para colegas atenderem, e aí, quando a gente não estiver atendendo, você usa um desses cômodos, que tal? Você arrasta o divã pro fundo, talvez dê para arrastar minha mesa, enfim, você abre um espaço pra você, dá a aula e depois arruma tudo de volta".
Foi nesse dia que decidi terminar a nossa relação.
Na época, era claro para mim que eu esperava numa relação que houvesse espaço para os meus desejos e os desejos do outro, não só os desejos do outro. Me casar com alguém que só pensava em si, alguém que eu precisava chacoalhar para lembrar que eu existo... Acredito que as pessoas podem mudar, de modo geral eu aposto nas pessoas, mas tem apostas que prefiro fazer à distância, bem longe da minha convivência.
Nos meus primeiros relacionamentos amorosos, só havia espaço para os desejos pessoais de cada um. Dois egoístas se relacionando. Quando rolava discussão, cada um ficava acusando o outro de ser/fazer assim ou assado. Projetos em comum? Difícil. Porque era só pensar em, por exemplo, uma viagem mais cara que um ficava: ok, mas tem que ser para o lugar tal e do jeito tal, e o outro ficava: não, tem que ser assado. Não havia espaço para acordos porque não havia espaço para os desejos de um e de outro. Quando coincidia de o desejo de um ser igual ao desejo do outro, por exemplo, os dois queriam ir para um mesmo bar, ok. Quando não coincidia... Briga. O sexo em relações assim é onde a paz acontece.
Também já tive relacionamentos em que o meu desejo sempre se sobrepunha a um outro que era mais apagado, que ia me atendendo, atendendo sem limite. No final das contas, perdi meu interesse nesse outro que vivia para mim, esse outro que foi me parecendo cada vez mais desinteressante.
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Num relacionamento amoroso, existem os meus desejos pessoais, existem os desejos pessoais do outro e existem ainda os nossos desejos em comum, que a gente vai descobrindo e construindo. Conciliar essas três pontas me parece o maior desafio numa relação.
Fico olhando para a relação de nossas avós e bisavós ou para qualquer relacionamento mais machista em que o desejo do marido é o mais importante: a casa gira em torno das vontades dele, a família mora e se organiza num dia a dia que atende sobretudo aos interesses dele, e os interesses dos outros membros da casa vão sendo atendidos quando dá, quando não contrariam o desejante principal.
Também fico pensando naqueles casamentos que seguem a linha "Happy wife, happy life": basicamente, um cara meio bananão e uma vida que vai se organizando em torno das insatisfações infinitas da mulher. Acho até que essa categoria de relacionamento costuma ser uma escolha de mulheres que têm pavor de cair no relacionamento da categoria anterior, a categoria machista.
Em relações assim desiguais, em que o desejo de um vai se impondo sobre o outro, se esse outro é mais acomodado, fica tudo bem. Quer dizer, você pode falar "ah, no fundo ele/ela não tá bem, né", mas vamos combinar que ali, no dia a dia sem conflitos, em que uma parte brilha no atendimento de suas vontades e a outra parte se esconde... Convenhamos que isso é uma espécie de paz, ainda que seja uma espécie meio torta de paz. Um manda, o outro obedece feliz.
Esse outro que obedece feliz provavelmente aprendeu muito bem a não desejar para si. Aprendeu que viver é atender ao desejo de outra pessoa, a ponto de não fazer questão nenhuma que as coisas sejam do seu jeito. Claro, muitas de nós, mulheres, ainda recebem essa educação: uma educação para atender as demandas do outro a ponto de nos esquecermos de nossas próprias demandas, ou talvez pior: a ponto de não sabermos quais são as nossas próprias demandas.
Já se a outra parte de uma relação do tipo um manda/o outro obedece é uma pessoa com vontades próprias, que percebe que nessa relação essas vontades ficam sem segundo plano, essa pessoa vai sofrer demais. Ou vai viver brigando. Se for nos dias de hoje, num país como o nosso, em que o divórcio de modo geral não é tabu, provavelmente vai se separar.
Essa pessoa que se separou porque seus desejos pessoais não tinham espaço na relação pode ficar sozinha, vivendo de acordo com seus desejos pessoais. Ou pode buscar uma relação em que haja espaço para esses desejos pessoais. Ou, ainda, pode buscar uma relação em que só haja espaço para seus desejos pessoais, e daí essa pessoa vai impor esses desejos ao outro, que vai topar se for acomodado, se estiver muito apaixonado, se não tiver consciência dos próprios desejos, se tiver pouco amor próprio, se aprendeu a abrir mão do que quer em prol do desejo do outro etc.
Um casal legal, na minha opinião, claro que é esse que encontra espaço para os desejos pessoais dos dois envolvidos e que ainda investe em desejos de ambos, os nossos desejos.
Significa que seja fácil? Não.
Significa que nunca haverá momentos/situações em que um fica tentando impor seu desejo para o outro, desconsiderando o que esse outro quer? Não.
Significa que nunca haverá momentos/situações em que um abre mão de si, se perde dos próprios desejos, vai vivendo de acordo com o que o outro quer e pode até ir se ressentindo? Não.
Como é difícil se relacionar. Como é difícil desejar. Como é difícil viver.
Cuidar dos desejos de si e dos desejos do outro e dos desejos em comum exige uma energia diária. Haja diálogo, sensibilidade, disposição e vontade de ficar junto.
Para ficar junto, será preciso fazer acordos, negociações. Será preciso fazer concessões onde dá para fazer concessões. Será preciso não fazer concessões em relação àquilo que nos é caro. Precisaremos, para isso, enxergar aquilo que nos é caro, aquilo de que não queremos abrir mão. Não podemos abrir mão de certas coisas que só nós sabemos. Podemos abrir mão só daquilo que nos dói largar, sim, puxa, preferíamos que fosse do nosso jeito, mas concordamos em largar porque é uma dor que aceitamos sofrer, uma dor que nos salvará de um ferimento maior.
Nossa, esse texto evidencia tão bem a dinâmica das relações.
E é tão importante o diálogo, deixar claro ao outro para onde queremos ir, que desejos queremos concretizar. Quando as coisas não ficam claras, quando não se há abertura fica tão difícil caminhar junto.
Tuas reflexões sempre reverberem por aqui, obrigado Liliane ^^