Comecei a ver Pretend it's a city, uma deliciosa série documental de 2021, dirigida por Martin Scorsese e toda vivificada pela autora e humorista Fran Lebowitz. Está na Netflix, tem episódios de meia hora, perfeitos para quem anda cochilando em episódios muito longos de qualquer coisa por melhor que a coisa seja, e pode ser resumida assim: uma série de mini-pensatas e comentários espirituosos de Lebowitz sobre Nova York e, por extensão, sobre a vida nas grandes cidades, as relações e as idiossincrasias humanas. Nunca fui a Nova York, não sabia quem era Fran Lebowitz, mas acabei encantada pelo pensamento afiado, autoral, envolvente da autora.
Num dos episódios, Lebowitz comenta que nunca deixaria qualquer pessoa entrar na casa dela. Ela se espanta com quem sai recebendo um monte de gente, porque para ela a casa é um espaço maravilhoso justamente porque oferece um respiro de todos os outros espaços onde ela não ponde controlar quem entra. Da porta para fora, ela acaba cruzando, contra sua vontade, com um monte de pessoas pouco razoáveis, inconvenientes e daí para baixo.
Acho que em menor ou maior grau qualquer pessoa minimamente razoável concorda com isso - mesmo aqueles mais extrovertidos, que sempre têm gente em casa, possuem seus critérios de escolha; podem até receber gente demais (na opinião de pessoas mais reservadas), mas não vão receber qualquer um, afinal, é a casa delas, elas decidem quem entra (ainda mais quando se mora sozinho).
Porém, fiquei pensando: o celular, especialmente as redes sociais, mudaram de modo significativo esse cenário. Sentados nosso sofá com celular na mão, a gente acaba recebendo qualquer pessoa, sim, e como isso nos estressa, como isso nos desgasta. É como se qualquer um pudesse entrar na nossa casa, mesmo aqueles com os quais não concordamos em nada, mesmo aqueles que nos estressam só da gente olhar.
Eu me lembro de quando era criança e adolescente e, além da porta da sala, as portas de entrada para outras pessoas em nossa casa eram a TV, o rádio, o telefone fixo. O telefone tocava e era sempre alguém da família ou amigo próximo, a rádio e o canal de TV nós escolhíamos, e quando não estava passando nada que nos interessava, a gente desligava. Nem nos passava pela cabeça ficar acompanhando algo ruim só para criticarmos. Vinis, livros e conversas eram povoadas por vozes escolhidas: queremos ouvir essa autora, esse autor; se fulano não nos interessa, não conversaremos sobre ele - e é claro que ele não entrará na nossa casa.
Pois pelo celular entramos em contato com discursos que abominamos, proferidos por pessoas com as quais não temos a menor afinidade. Pelo WhatsApp chegam links que não queremos abrir sobre coisas que não nos interessam ou que nos fazem mal, isso para não falar na ligações de telemarketing que continuam sendo feitas até fora do horário comercial: oito da noite, você jantando, toca o celular, você se levanta e é alguém da VIVO oferecendo um pacote. Você prometeu que não ia ler nada sobre extrema direita para não se desgastar, mas adianta, se o link vai até você quando você só queria abrir seu e-mail ou conferir seu horóscopo? Você ia entrar no TikTok só para ver uma receita, ou no X para ver um perfil, mas pula na sua tela alguém ou alguma visão de mundo que não tem nada a ver com você e que te choca, te entristece, te suga. À vezes, é só abrir o celular para vir chumbo grosso e o clima pesar. E às vezes é a gente mesmo que vai atrás do que nos faz mal: na linha do “mas como isso é possível?” “como pode alguém dizer isso” ou “que história é essa?”, seguimos um comentário ou manchete ou perfil sugerido que a princípio não tem nada a ver com a gente e começamos a passar nervoso, nós que só queríamos encerrar o expediente com alguma tranquilidade.
Tem hora que o conteúdo vem de alguém de quem você preferiria manter distância, mas às vezes é até alguém com quem você poderia se encontrar rapidamente na rua, no corredor do trabalho, trocar algumas palavras sem estresse algum… Mas alguém que você definitivamente não convidaria para entrar na sua casa, entende?
Convidamos para nos visitar pessoas de quem gostamos, com quem temos um mínimo de afinidade, um bem querer. Com celular na mão, convidamos qualquer um e nos momentos mais inoportunos para nós mesmos.
Sim, é enriquecedor entrar em contato com visões de mundo diferentes da nossa, assim nosso olhar se alarga. Por isso lemos livros de diferentes autores, vemos filmes com histórias fora da nossa bolha, topamos conhecer aquele lugar que não conhecemos, ouvir músicas fora do nosso repertório. Legal, ótimo. Mas tem uma escolha aí, e não um se deixar levar erraticamente inclusive quando nos está fazendo mal. Tem uma escolha e também um limite.
Acredito que cada um de nós tem uma disposição e um limite para entrar em contato com pessoas, ideias, discursos com os quais não temos afinidade. Se esse discurso é do tipo vazio e agressivo, então, se propaga a ignorância, o ódio, a mentira... Aí acho que acrescenta só para a gente saber que esse tipo de coisa existe, para não cairmos na armadilha de nos alienar num mundo rosa que não existe, mas quanto menos contato, menor.
Além de não receber qualquer um em casa, Frans Lebowitz não tem um smartphone, não está nas redes sociais. Pensando que ela quer escolher bem com quem dividirá sua sala de estar, faz sentido essa escolha.
Já para nós que estamos neste mundo de celular na mão, haja foco e auto-controle.
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No primeiro dia de 2024 eu desativei meu Instagram. Em dezembro, quando estava fazendo meu balanço do ano, eu fiz uma reflexão bem parecida com a sua, apesar de não tê-la colocado em palavras. Eu já estava incomodada com o Instagram, a quantidade de propaganda, a falta de controle do que eu queria de fato ver, o tanto de influencer de tudo quanto é coisa. Mas o que me fez tomar a decisão mesmo de sair foi um dia em que eu estava fazendo uma limpa nas contas que seguia. Eu comecei a perceber que mesmo tirando todas as contas de influencers, lojas e etc., eu ainda seguia umas 300 pessoas e a maioria me seguia de volta também. Dentre essas pessoas havia amigos realmente próximos, familiares, vizinhos, colegas de outras épocas, umas pessoas que eu nem lembrava de onde conhecia. 300 pessoas. É muita gente! Eu me casei em 2023, numa cerimônia intimista para 30 pessoas, do jeito que sempre sonhei. Eu sou quase como Lebowitz, quase não recebo pessoas em casa, se o faço é apenas para gente muito próxima mesmo. No entanto, lá estava eu, compartilhando meus momentos íntimos, como meu casamento, com aquelas 300 pessoas, dando acesso a elas à minha "casa". Além disso, eu me vi também do outro lado, acompanhando a vida de pessoas que eu não tenho qualquer intimidade (jamais seria convidada para a casa delas) e que sequer me interessava. Por pura curiosidade, tédio ou entretenimento (e eu nem gosto de programas como Big Brother, nada contra, só não gosto mesmo). Enfim, nesse dia eu percebi que não fazia nenhum sentido mais para mim ficar ali (até porque não tenho um trabalho que "dependa" das redes sociais) e decidi que passaria o ano de 2024 sem Instagram, sem redes sociais. E o melhor de tudo foi que fazer isso me trouxe o que eu há tanto buscava: mais tempo para mim. Voltei a ler mais, a estudar literatura e a escrever. Sua newsletter inclusive tem sido uma grande companheira nessa fase sem redes sociais =D
Me identifiquei tanto com este texto. É exatamente isso, o celular escancarou as portas da nossa casa. É como dizem, a "a internet tem o poder de fazer outra pessoa me irritar da casa dela na minha casa".