Hoje fui renovar minha CNH, vulgo carteira de motorista. Fazia quatro anos e sete meses que ela estava vencida. Lá no Detran, aliás, descobri que, se eu tivesse enrolado mais um pouco e esperado dar cinco anos de vencimento, eu precisaria fazer 15 horas de autoescola para recuperar minha carteira. Voltar para a autoescola vinte e cinco anos depois de ter tirado a carteira, que preguiça! E que gasto, né. Não sei quanto custam 15 horas de autoescola, mas deve ser muito, 15 horas de qualquer coisa não costuma ser barato.
Fiquei tanto tempo sem carteira de motorista porque, em 2018, resolvi cortar gastos. Eu tinha acabado de perder meu emprego fixo como editora na revista Claudia, não estava disposta a encarar outro emprego fixo e saí cortando tudo: babá, diarista, vinho, restaurante, viagem, salão de beleza, tudo que eu pudesse eu saía riscando. Minha ideia era ficar em casa escrevendo e gastando o mínimo. Até exagerei nos cortes, porque não comprei meias novas à medida que as minhas iam furando, não mandei consertar as cortinas que tinham rasgado, fui adiando o dentista aonde precisava ir, cortei o plano de saúde de que eu precisava para fazer uma cirurgia, enfim, dois anos depois minha vida ficaria uma bagunça e meu apartamento sujo e caótico, mas enfim, o ponto aqui é que nessas eu vendi meu carro e resolvi me locomover a pé, de uber, ônibus e metrô.
O tempo foi passando e não senti falta de dirigir. Eu morava num bairro bem central, estava trabalhando em casa, minha filha ia de perua para a escola. Me locomover a pé, de transporte público ou táxi saía bem mais em conta do que manter um carro, e ainda por cima um vizinho tinha alugado a minha vaga. Aí chegou 2020, pandemia. Resolvi alugar um carro para passar uns dias fora de SP com minha pequena, relaxar numa praia vazia, e então descobri que a minha carteira tinha vencido na mesma época em que vendi meu carro. Viajar de ônibus no auge da pandemia nem pensar, então fazer o quê, deixei pra lá o plano de sair um pouco de São Paulo e jurei que, depois que a vacina viesse, eu renovaria meu documento para não passar mais por isso. Me vacinei em 2021, mas a essa altura estava começando a namorar meu marido, que adora dirigir, não tem o hábito de beber quando sai à noite, não faz questão nenhuma de revezar a direção, e seguimos morando num bairro central, então a minha carteira continuou não fazendo falta.
Mas chegou 2022 e comecei a ficar incomodada: vai que preciso da carteira. Sei lá, por algum motivo. Na verdade, não era só isso, não era só uma questão prática. Era também, mas tinha algo mais: eu tinha começado a me ver como uma pessoa que não dirigia e isso foi me incomodando. Comecei a ter saudade da minha eu que dirigia. E ela me parecia cada vez mais distante, cada vez mais confinada em outra subencarnação desta minha existência.
Quando a minha filha falou que não se lembrava de mim dirigindo, sendo que levei aquela garota pra lá e pra cá no meu finado Honda civic até ela ter cinco anos, falei: chega. Como procrastino um pouco para tudo que envolve burocracia, meu "chega" quis dizer que dali a um ano eu entraria no site do Poupatempo e agendaria minha ida ao Detran. Agendei para dali a duas semanas. Chegou o dia: hoje.
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Enquanto eu aguardava minha senha aparecer no painel, comecei a ficar emocionada. Mentira: eu já tinha acordado emocionada. Vocês vão me achar muito emotiva se eu admitir que, quando finalmente agendei no site a minha ida ao Detran, já me emocionei? Pois é verdade. Eu teria minha CNH de volta e isso mexia comigo. Na minha rotina atual, não pretendo dirigir, muito menos comprar um carro. Se a gente se mudar, como estamos planejando, devo voltar a dirigir com alguma frequência. Mas ainda não é certo. O caso é que só o fato de voltar a ter minha CNH válida me encheu de alegria.
Ali esperando minha senha aparecer no painel, lembrei da Lili de 18 anos que chorou muito quando passou no exame de habilitação. Não foi exatamente fácil tirar a carteira. Fui daquelas pessoas que chegam à primeira aula da autoescola sem nem saber onde fica a embreagem. Não passei na primeira tentativa, nem na segunda. Ao me desejar boa sorte no terceiro exame, meu professor disse: "Sinceramente, não sei o que esperar. Tem dia que você dirige como se dirigisse há anos, tem dia que você deixa o carro morrer toda hora". Mas passei nessa terceira tentativa. Liguei para a minha mãe chorando, depois para o meu namorado da época. Tem muito jovem de 18 anos hoje que não dá a mínima para esse negócio de ter carteira, acho que é um sonho de outra geração. Quando eu tinha 18 anos, era um grande sonho meu e de muitos amigos. Ser aprovada no exame de habilitação me deixou quase tão eufórica quanto passar no vestibular.
Então eu dirigi em BH, onde eu morava, até os vinte e três anos, quando me mudei para SP. Um amigo, o Daniel, trouxe meu Corsa para cá. Lembro do Daniel me mandando um torpedo para o meu Nokia: "Seu carro está aqui estacionado no Frei caneca, piso dois. Deixei a chave embaixo do banco do motorista. Tô indo ao cinema, depois vou sair com um carinha, depois não sei. Beijo". Corri para o shopping Frei Caneca, me alegrei tanto quando encontrei meu Corsa depois de andar um pouco pelo estacionamento. Chave embaixo do banco, documentos no porta-luvas, cheirinho do meu carro meio sujo meio limpo, tudo certo. Dei a partida, fui sentindo a direção aos pouquinhos, fui dirigindo devagarzinho até a saída do estacionamento. E então a luz da rua de dia, e então dirigir por São Paulo pela primeira vez. Por que era tão importante para mim?
Fui me entendendo pelas ruas de São Paulo numa época sem Waze. Peguei um guia Quatro Rodas na editora, já que na época eu trabalhava na Capricho, e por ele fui aprendendo a dirigir aqui. Me perdi várias vezes, sobretudo nas marginais. Quando me perdia, aumentava o volume da música, respirava fundo e dirigia sem pressa, seguindo as placas. Eu me lembro muito dessa sensação de: me perdi, sim, mas não vou esquentar a cabeça com isso. Uma hora eu iria me encontrar, eu sabia. E também sabia que, depois de me encontrar, mais dia, menos dia, eu ia me perder de novo.
Um dia, troquei de carro. Comprei um GPS que ficava pendurado embaixo do espelho do meio. Por dezessete anos, dirigi geralmente com prazer e com relativo sucesso: foram poucas multas e nenhuma batida significativa. Depois que baixei o Waze no celular, parei de me perder. A tecnologia é legal, mas às vezes estraga as metáforas.
Quando minha senha apareceu no painel do Poupatempo, eu estava tão agitada que errei a mesa de atendimento, esqueci, precisei voltar para conferir a senha no painel. Enquanto eu cadastrava biometria, atualizava endereço e outros dados pessoais, pensava: será que não vai ter problema ter esperado tanto? Será que vou sair mesmo daqui com a minha carteira renovada?
Pois saí com a carteira renovada. Foi tudo muito simples. Às vezes, as coisas são simples.
Em vários momentos da vida, quando faço uma coisa que há muito tempo não fazia, sinto que me reencontro com uma versão anterior de mim. E é tão saboroso quando essa versão anterior ainda faz sentido na minha vida atual e vai se acomodando nela, abrindo um espaço. É uma mistura de familiaridade e novidade, é algo meu de volta comigo, agora em outro tempo, outro contexto, outras circustâncias. É como achar uma bolsa que você usava muito e ficar testando com o que ela combina agora, se olhando no espelho. É olhar um álbum de fotos e conseguir recuperar alguns daqueles elementos que aparecem lá. É trazer para perto um pouco da própria história. Algumas coisas não dá para termos de volta, mas puxa vida, isso aqui dá, e disso aqui estou com tanta saudade.
No final de 2020, depois de mais de um ano sem ficar com ninguém, marquei um encontro com um conhecido e fui lá na casa dele. Passei de solidão e preocupação com a pandemia a um date com um cara com quem eu não tinha muito a ver, mas era um cara legal e que estava sozinho, eu estava tão cansada e sozinha, por que não? A vacina ainda não tinha chegado, mas era aquela coisa, "vamos seguir todos os protocolos". Não seguimos, mas foi uma exceção que me fez muito bem. Eu me lembro de ter voltado pra casa de táxi, usando máscara e pensando que provavelmente nunca mais ficaríamos juntos, mas que aquela noite tinha valido tanto à pena, tinha me trazido de volta uma antiga eu de quem eu estava com saudade, uma eu de que eu nem desconfiava que ainda existia. A eu que saía bastante de casa, que se produzia toda, ia a dates, passava a noite rindo, flertando e falando de banalidades tentando parecer interessante, e depois voltava cansada e eufórica de madrugada. Uma eu que não fazia mais tanta parte de mim, eu sabia, mas que tinha sido muito gostoso reencontrar por alguns momentos, por uma noite inteira.
De alguns antigos eus queremos distância, outros queremos visitar de vez em quando, de outros temos muita saudade. Alguns eus, quando voltam, nos ensinam ou simplesmente nos refrescam. Revigoram.
Quando eu voltar de fato a dirigir, saberei a qual categoria desses eus o meu eu motorista pertence.
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Este texto falou TANTO comigo – e num dia em que eu estava precisando tanto disto – que nem sei explicar... Só sei que se ele estivesse em uma folha impressa, eu teria colorido 3/4 dele com marca-texto amarelo vibrante!
Eu amo dirigir. Pra mim é um símbolo de independência e liberdade. Hoje moro em Barcelona e não dirijo mais com tanta frequência (somente nas viagens esporádicas aqui e ali) e sinto muita falta dessa parte adormecida que me define tanto como pessoa. Adorei o texto, me transportou para um lugar bonito. Beijos