Uma hora livre bem vivida
Depois volto para o cronograma mundano-contemporâneo toda vivificada
De manhã, antes de levar meu filho para a creche, costumo ter uma hora livre, uma hora inteirinha sem nenhum compromisso.
Depois de levá-lo, vou passar no mercado, vou fazer um café e ir para o computador, e vou à academia se for dia de academia, e vou tomar banho, e lavar o cabelo, e entrar na reunião, e responder mensagens, e cuidar de burocracias, e trabalhar mais um pouco até a hora do almoço, que também é uma hora livre, mas geralmente acompanhada.
Essa hora livre da manhã, não: ela é só para mim. Costumo aproveitá-la da seguinte forma: pego uma xícara de chá, pego meu pão com queijo ou manteiga, desço as escadas para o meu escritório e fico comendo em silêncio no sofá, quieta. Na sequência, pego um livro para ler.
Pois esta semana teve um dia em que, antes de a minha hora livre começar, minha manhã foi mais caótica do que de costume. Meu filho acordou com a fralda cheia e não queria trocar, troquei com ele chorando e pedindo mamadeira, fui fazer a mamadeira com ele puxando a minha roupa, depois ele recusou a mamadeira e começou a jogar objetos pelo chão, nisso minha gata começa a miar sem parar e meu celular começa a apitar com mensagens de trabalho, enfim, caos. Corta para uma hora depois, o cenário doméstico já estabilizado, eu descendo as escadas para tomar café e curtir meu precioso oásis solitário matinal.
Sentei no sofá, botei a xícara sobre o gaveteiro e peguei para ler A maçã no escuro, da Clarice. Foi muito concreto como meu corpo foi respondendo à leitura. Clarice dizia que escrevia com o corpo, e eu percebi que é com o corpo que leio Clarice. Provavelmente pela primeira vez naquela manhã, eu sentia o meu corpo, a minha respiração.
Esse despertar corpóreo não acontece exclusivamente quando leio Clarice, embora aconteça mais quando leio alguns livros do que outros. O sagrado momento dedicado a uma leitura de fôlego, neste mundo cheio de leituras-petiscos pelas redes sociais, me conduz a uma introspecção muito vital, mas ler livros que têm uma força poética (mesmo sendo escritos em prosa) costuma me envolver com uma consciência especialmente vívida e prazerosa.
Ponciá Vicêncio, da Conceição Evaristo, e O unicórnio, da Iris Murdok, os dois livros que eu estava lendo antes de A maçã, também me conectaram rápida e serenamente com minha força viva. Sinto minha própria presença como se só ali eu tivesse acordado, sinto o peso bom da minha gata no meu colo, respiro me dando conta de que estou respirando, olho para o limoeiro diante da janela. Sinto que existo, e isso é tão bom.
Nesse final de semana contei aqui sobre a arte de desacelerar. Tenho relativa facilidade para ficar à toa (isso quando tenho tempo para ficar à toa – pois sou uma mulher preguiçosa presa no corpo de uma mulher ocupada). Porém, precisei nas últimas semanas reprender a lentidão: fazer rápido as coisas que precisam ser feitas rapidamente e então ativar meu modo mais tranquilo para todo o resto, em vez de ficar acelerada sem necessidade.
Não desperdiçar velocidade com o que não precisa ser veloz, em vez de ficar no piloto automático da pressa, requer que ela, a pressa, não seja internalizada – o que, claro, é um desafio em tempos de tantas demandas, prazos, desejos e preocupações em excesso e produtividade sem fim.
É incrível como ler literatura me ajuda nesta arte de desacelerar. O momento de ler ficção me conduz, e de modo firme, a um ritmo mais natural, mais tranquilo e ao mesmo tempo faiscante, pois sinto o real com mais impacto, com mais vivacidade. É físico, experimento meu corpo diferente, meus braços, minhas pernas, minha respiração.
O despertador toca indicando que minha hora livre chegou ao fim e me levanto muito mais leve, refeita para o retorno às tarefas, horários e demandas, mais atenta e preparada para cada brecha nesse cronograma mundano: e beijo meu filho ao revê-lo, e o abraço com ternura quase aflita ao ajeitá-lo no banco do carro, ele tão lindo, morninho, macio, sorridente, o sorriso dele quando me vê de volta, as nossas brincadeiras todas, nossa...
Vira e mexe alguém me pergunta como arranjo tempo para ler. Mas como eu poderia não arranjar tempo para ler? Me diga?
Lembro de um monge que disse que você deve meditar vinte minutos por dia, a não ser que esteja muito ocupado: nesse caso, medite por uma hora. Tem sido exatamente assim na minha vida.
Se não tenho tempo para ler, aí é que preciso ler todos os dias.
Amei a sensibilidade do texto,estou encantada com sua newsletter, sempre li muito não-ficção.......mas tens me inspirado taaanto que estou no seu movimento ,
Poesia pura