O uso não intencional do celular
Quantas vezes você destrava a tela para lidar com um microdesconforto?
Esta semana li numa matéria que, de acordo com um estudo da Apple, um usuário de iPhone desbloqueia o aparelho mais de 100 vezes por dia. Outro levantamento recente, citado na mesma matéria, aponta uma média entre 96 e 150 desbloqueios diários por pessoa. Mas o dado que mais me chamou a atenção foi que, em 89% das vezes, as pessoas desbloqueiam a tela sem que haja qualquer notificação. Ou seja, não foi o celular que chamou a pessoa, foi a pessoa que resolveu desbloquear o celular por conta própria.
É claro que, muitas vezes, mesmo que não haja nenhuma notificação, nós desbloqueamos a tela com intenção (fazer uma pesquisa, consultar alguma coisa, mandar mensagem para alguém, anotar uma ideia – eu mando ideias gravadas para mim várias vezes durante o dia). Mas o tal do uso não intencional do celular é o que mais me incomoda, tanto em mim (evito ao máximo fazer isso) quanto na outra pessoa que está comigo (acho um saco).
A mesma matéria traz um estudo que mostra que 53% dos usuários se dizem “incapazes de resistir” à vontade de pegar o celular mesmo quando estão tentando se concentrar em outra coisa, e que 41% afirmam desbloquear o aparelho “sem nem perceber”. É nisso que consiste o uso não intencional, e muitas vezes ele acontece porque a pessoa está recorrendo ao celular para lidar com os microdesconfortos do dia a dia.
E, claro, são inúmeros os microdesconfortos do dia a dia.
Desde um silêncio no elevador, até uma pausa entre as atividades, passando pelo momento do jantar em que o assunto morreu até se defender das partes mais tensas de uma série ou filme (esse último item eu não sabia que existia, mas conheci uma pessoa que faz isso).
Para que sentir tédio, se podemos pegar o celular? Para que correr o risco de se lembrar daquela preocupação ou frustração, se podemos pegar o celular? Falando em preocupações e frustrações: para que correr o risco de sentir o que se está sentindo, preocupação, ansiedade, receio, expectativa, paixão, qualquer coisa – para que lidar com todo o sobe e desce humano de sentir, se podemos pegar o celular?
Bom. Quem, como eu, é fã da série The White Lotus, ainda que essa terceira temporada tenha sido mais fraca, já deve ter bem claro que uma vida sem desconfortos não é uma vida com mais contentamento e realização. Aliás, gosto muito quando o psicanalista Christian Dunker diz numa entrevista que “autocuidado não é hipertrofia do bem-estar”.
É preciso ter contato com os desconfortos, até para aproveitarmos os momentos de conforto – interna e externamente. Quando você se protege muito do desconforto, pode ter certeza de que nem dará mais tanto valor ao conforto: os momentos de conforto serão apenas os normais, e você nem vai desfrutar daquilo, como muitos personagens de The White Lotus: para eles, o conforto é ok, e qualquer desconforto é insuportável. Ou seja, ao tentar transformar a vida numa linha de conforto contínuo, perde-se a sensação de vida, o contentamento, a sensação boa de ser quem se é e levar a vida que se leva – pois estar vivo é estar em movimento, da dor para a alegria, da alegria para a dor, do quieto para o agitado, do agitado para o quieto, do tédio para a emoção, da emoção para o tédio, da esperança para a amargura, da amargura para a esperança e assim vai.
No meu livro de práticas Amor-Próprio, Amor pelo Mundo, tem uma prática que chamo de “Detox da espera”. É assim: “Hoje, em nenhuma das esperas, pegaremos o celular. Ficaremos simplesmente... esperando. Entregues aos nossos pensamentos ou ao vazio, observando nosso entorno, ouvindo aquele diálogo ao longe, reparando nos detalhes à nossa frente. Desfrute até mesmo do tédio da espera. Você pode usar o seu celular hoje, mas em momentos reservados para isso. Momentos nos quais você está consciente de que quer ou precisa usar o celular.”
O celular não é nosso inimigo, mas não é preciso preencher cada fresta entre as nossas ações com ele. Não só não é preciso, como é maléfico: inúmeros estudos (e a nossa experiência cotidiana) deixam claro como o excesso de tempo no ambiente online traz ansiedade e todo tipo de mal-estar.
O jeito é resistir. Nossos dias certamente ficarão cada vez mais permeados pela tecnologia, e isso vai ser um problema cada vez maior se nos rendermos a todo instante à lógica da máquina, com seus estímulos incessantes e sua velocidade.
Eu lendo isso enquanto espero meu almoço, num desbloqueio não intencional... Obrigada palavras Lili :)
Vc traduziu tão perfeitamente. Microdesconfortos do cotidiano… que conceito necessário. Eu pensava sobre isso esses dias, enquanto pegava meu celular sempre que uma ansiedade ou incômodo apareciam enquanto fazia meus trabalhos. Tenho tentado diminuir o uso do celular. Ainda é muito difícil. Lidar com o sentimento de que tô perdendo tempo sem fazer nada é insurportável. No fundo sei que não tô perdendo tempo, mas ganhando. Pena que corpo e mente viciados não entendem isso.